Cerebral-místico-palaciano. «Do not go gentle into that good blog»
segunda-feira, agosto 17, 2009
Amores De Verão
O Ruizinho sempre fora um rapaz frágil, com a morte à espreita. Desde tenra idade que sofria de todo o género de maleitas: quando lhe pegavam ao colo, arranjava logo um torcicolo, um braço partido, quando jogava uma partida de futebol, ou uma insolação, caso apanhasse um pouco de sol. Uma pequena rabanada de vento provocava-lhe logo uma constipação, ou pneumonia. Por isso, não foi de estranhar que, já no final da adolescência, um desgosto amoroso lhe tenha causado um sopro no coração, que logo ficou tão inchado que rebentou quase todas as suas artérias. A situação era grave, exigia um transplante, e foi imediatamente internado. Todavia, cedo se percebeu que não havia coração de nenhum dador que suportasse o tamanho da dor do seu triste fado. A sua mãe bem lhe disse: “querido filho, gosto muito de ti, mas gosto ainda um pouco mais de mim, não te cedo o coração. Quando muito, posso dar-te um rim”.
Depois de alguma hesitação, os seus médicos resolveram colocar-lhe, junto ao coração, uma bexiga de porco. Ao fim de algumas horas no bloco operatório, o Ruizinho ficou com duas bexigas, uma com a sua função normal, outra para auxiliar o sistema circulatório.
Como o leitor comum saberá, e segundo a Wikipedia, Bexiga é o órgão humano no qual é armazenada a urina, que é produzida pelos rins. É uma víscera oca caracterizada pela sua distensibilidade. Na bexiga, encontra-se a uretra (o ducto que exterioriza a urina produzida pelo organismo).
No caso do Ruizinho, a bexiga servia para guardar o excesso de sangue produzido pelo seu acalorado coração. Quando sentia uma nova paixão, e o coração era impiedosamente bombeado, logo grande parte do sangue era directamente enviado para a bexiga, para aí ser armazenado, e logo expulso pela uretra.
Por ser um assunto complexo, e de demorada explicação, poupo aos leitores os pormenores exactos sobre o modo como o sangue era expelido do corpo do Ruizinho. Posso apenas afiançar que a operação correu muito bem e, ao fim de poucas semanas, já podia levar uma vida normal, e apaixonar-se.
Os anos passaram e o Ruizinho arranjou muitos amigos e conheceu muitas mulheres. É habitual encontrá-lo à mesa de um bar, onde segue com o olhar qualquer mulher que por lá esteja sentada, ou que acabe de entrar. Depois, confidencia aos amigos “acho que estou apaixonado”, e suspira profundamente. Bebe mais uns copos, e dirige-se à casa de banho. Regressa mais aliviado, pede mais bebidas, e paga uma rodada a todos. Em seguida, volta a ficar com um olhar ausente, distraído, e balbucia, volta e meia, as mesmas palavras de sempre. Depois, levanta-se, e dirige-se de novo à casa de banho. Desculpa-se, dizendo que bebeu muito, mas todos sabem que vai esvaziar o excesso de peso acumulado no coração.
O ritual repete-se várias vezes, quase todas as noites. Apesar de tudo, o Ruizinho é um rapaz normal, agradável, e trabalhador. Anda a pagar uma casa a prestações, e diz à mãe, com quem vai almoçar a um restaurante, todas as semanas, que há-de casar em breve, com uma mulher por quem se apaixone, e que terá muitos filhos.
A mãe dá-lhe conselhos, diz-lhe que não deve ser tão tímido, e que não deve beber tanto, parece mal um rapaz tão pacato e trabalhador sentar-se, todas as noites, a beber, à mesa de um bar. O Ruizinho não lhe responde. Está permanentemente distraído, a olhar para as outras mesas, e responde-lhe, apenas: “acho que estou apaixonado”. A mãe cala-se, e fica satisfeita. Pensa que o filho se há-de casar em breve. Olha, atenta, para as outras mesas, à espera de cruzar o seu olhar com o da sua futura nora. Depois, cansa-se, e pede a conta, enquanto o filho vai, de novo, à casa de banho.
- Então, foste de férias para alguma ilha no Pacífico?
- Não, porque é que perguntas isso?
- É que o blog anda meio parado…
- Ah, pois…sabes como são estas coisas, no Verão…
- Mas devias actualizar isto…gosto de ter leituras de praia.
- Levas o computador com internet wireless para o meio da areia, é?
- Não desconverses. Não tens nada para contar? Uma anedota? Um entremez com o Romualdo?
- Não tenho falado com o Romualdo. Mas posso contar uma pequena história (sem muita graça, diga-se, de passagem).
- Óptimo! Olha…mas a história não tem mais de 10 linhas, pois não? É que estou de férias, e não gosto de ler textos grandes, e maçudos…
- Por acaso tem mais de 10 linhas. Mas vou tentar abreviá-la ao máximo…
- Faz-me esse favor, agradecia imenso! De qualquer forma, vou lendo aos poucos, 10 linhas por dia, para ir mantendo a cabeça ocupada.
- Fica combinado, então. Olha, vou-te contar o que aconteceu ao Rogério S. Lembras-te dele?
- Rogério S.? Não estou a ver quem é…vamos fazer uma coisa…vais contando a história, oralmente…depois reduzes tudo a escrito, e será mais fácil para mim ler tudo de seguida, sabendo, mais ou menos do que se trata…podes começar, estou a ouvir. Ok…O Rogério S. era um Party Animal. Conheces o termo, não? Nas festas em que participava, mesmo naquelas onde não seria, supostamente, a personagem principal, acabava por brilhar gloriosamente. Foi o caso, por exemplo, do casamento do seu velho amigo André. No final da festa, todos aplaudiam e aclamavam o Rogério S., incluindo a noiva, e já ninguém se lembrava que acontecimento estava a ser festejado.
O próprio Rogério S. casou, numa bela tarde de Verão, apenas para ter o prazer de ser o anfitrião da maior festa da década. E o seu casamento não foi a maior festa da década porque foi suplantado pela magnífica festa de divórcio, organizada 3 meses depois, como pretexto para a rentrèe, depois das férias.
Como Rogério não foi baptizado em pequeno, logo tratou de arranjar a mais brilhante festa de baptizado do Século, tendo para isso, mandado encerrar várias praias inteiras, para se banhar mais à vontade no Oceano, enquanto era iniciado na fé Cristã, entre um maralhal de amigos entusiastas. Depois, mandou o padre benzer centenas de garrafas de vinho, antes de se embebedar com o sangue de Cristo.
- Agora que falas nisso, acho que fui a essa festa. Foi há quanto tempo?
- Não sei, não me lembro. Mas deixa-me continuar. Estava a dizer que o Rogério era a alma de todas as festas. Mas, no meio de toda esta contagiante alegria e entusiasmo, ele guardava um crescente rancor relativamente a uma Cerimónia específica: de entre todas as festas onde fora o Rei, apenas lhe faltava organizar uma: o seu próprio velório. Achava intolerável não poder estar consciente nesse momento tão importante. Por isso, depois de pensar um pouco, acabou por resolver o assunto de uma forma prática. Avisou o Ricardo, o seu melhor amigo, e contou-lhe o plano: Rogério ia forjar a sua própria morte. Para isso, contava com a preciosa ajuda de Ricardo, a única pessoa que iria ter conhecimento da farsa. Rogério ia arrendar uma grande sala numa Casa Mortuária junto à igreja do seu bairro. Iria, também, comprar um caixão, que colocaria no meio da sala, e onde se enfiaria, durante parte da noite, enquanto chegassem os convidados. Ricardo diria a todos os amigos de Rogério que este falecera, de véspera, pedindo-os para comparecerem. No momento em que estivessem todos a carpir as suas mágoas, o caixão abrir-se-ia, ao som de uma música qualquer, e sairia de lá Rogério, o Party Animal, apenas para começar a dançar com todos os convidados, que cairiam a seus braços, mal soubessem que estava vivo.
- Ah ah! Bela ideia! E levou o seu plano avante?
- Claro! Apesar dos protestos do Ricardo, que o avisou que os amigos iriam ficar furiosos. Mas o Rogério insistiu.
-Não sei que música escolheria para abrir a pista….talvez o Highway to Hell”…O que achas?
- Eu escolheria o “nº1 Song In Heaven”, dos Sparks. Mas continuemos com a história: numa bela tarde primaveril, Ricardo comunicou a centenas de pessoas a tristíssima notícia do falecimento de Rogério S., e o subsequente velório, marcado para as 22 horas, em ponto.
Ricardo abriu um evento especial na sua página de Facebook, com o título “Rogério S.- a Morte do Século - Velório, Hoje, às 22 horas”. Na mesma página, não se esquecia de pedir a todos que trouxessem muitas garrafas de bebidas alcoólicas “em memória do nosso querido amigo, que haveria de gostar disto”.
- Isto faz-me lembrar as últimas palavras do Picasso. Sabes quais foram?
- Sei. “Bebam por mim”, e mais não sei o quê. Adiante. Pelas 22 horas, já quase ninguém cabia na enorme Capela Mortuária. Não faltou nenhum dos amigos, familiares e antigas namoradas de Rogério S. Estavam inconsoláveis. Ajoelharam-se, durante vários minutos, junto ao caixão, a chorar. Depois, começaram a contar as histórias mais excepcionais do defunto. Rogério, que ouvia todas as conversas, dentro do caixão, estava encantado, com todas essas maravilhosas palavras de apreço, e apeteceu-lhe levantar-se, para abraçar todos os seus amigos. Mas conteve-se. Preferiu aguardar mais um bocado, pelo momento mais oportuno.
Até que começou a intervenção do Ricardo. Lembro-te que o Ricardo era o melhor amigo de Rogério, e durante todos esses anos, funcionara como o seu testa de ferro, a sombra perfeita, que nunca se evidenciava perante os amigos, face à gigante personalidade de Rogério. Mas nessa noite, face à indisponibilidade do suposto defunto, teve de fazer as honras da casa. E safou-se muito bem. Começou por consolar todos os seus amigos, dizendo que Rogério os “deveria estar, de certeza a ver, e que desejaria que eles se divertissem muito”. Abriu várias garrafas de vinho, e começou a distribuir copos por todos. Depois, começou a contar histórias divertidas do falecido. Após alguns minutos, já todos se riam.
Foi o momento apropriado para Ricardo buscar a sua guitarra, e começar a cantar alguns temas, “em memória de Rogério”. À segunda música já todos batiam palmas. Depois da quarta canção, Ricardo chamou várias amigas de Rogério para fazerem uns duetos consigo, convite esse que foi bem aceite por todas. Abriu a pista, e começaram todos a dançar em volta do caixão. Alguns preferiam dançar aos pares, outros imitavam Rogério S., tudo numa enorme animação.
Os fantásticos (e surpreendentes) dotes de Ricardo para tocar, cantar e dizer anedotas, aliados à enorme quantidade de álcool ingerido por todos, tornaram a festa extremamente animada. Até havia algumas pessoas a dançar em cima do caixão, como se estivessem em cima de alguma coluna de uma discoteca.
- Então, e o Rogério? Nunca mais saía do caixão?
- Pois, parece-me que o Rogério se sentia, no mínimo, um pouco confundido, e não devia saber muito bem o que se passava. Mas lá acabou por se levantar, aproveitando um momento em que os bailarinos que estavam em cima do caixão foram à casa de banho. Ao princípio, ninguém reparou na sua presença. Mas lá conseguiu chegar à mesa de DJ, e colocar uma música qualquer, talvez o Stairway To Heaven, ou outra coisa do género. As pessoas olharam, para ele, ao sentirem que havia um som a sobrepor-se à música do Ricardo.
Quando repararam de quem se tratava, olharam, espantadas, sem entender nada do que se passava. Mas não ficaram demasiado satisfeitas, ao contrário do que pensara o Rogério.
- Mas porquê? Não gostavam dele? Ou teriam ficado habituadas à ideia de que ele tinha morrido, e o seu reaparecimento só serviu para reabrir feridas antigas?
- Oh, sei lá... Estou só a contar a história, abstenho-me de dar interpretações. Isso fica para os ouvintes e leitores. Olha, mas vou abreviar a história. Conto só os factos essenciais: 1- O Rogério começou a pôr música; 2- os amigos foram ter com ele, para tirar satisfações; 3- O Rogério contou a história atrás mencionada, cada vez mais atrapalhado, por ver que os amigos não achavam graça à sua pequena brincadeira; 4- acabaram todos por lhe dar uns tímidos abraços; 5- O Rogério continuou a pôr música, mas poucas pessoas dançavam. A maioria dos presentes foi para o pé de Ricardo, que deixara de dar o seu concerto, e fazia, agora, também, o seu DJ Set; 6- face ao que se sucedia na sala, Rogério meteu a música cada vez mais alto; 7- Ricardo meteu, também, por sua vez, a música mais alto.
- E como é que tudo acabou?
- A certa altura, apareceu um Funcionário da Casa Mortuária, que ficou, passe a piada fácil, “mortificado” com o ambiente vivido dentro da sala.
-Ahah! Calculo! O que é que ele disse?
- Disse: “pensava que se tratava de um velório, mas afinal estou a ver duas pessoas a meter música aos altos berros, outras a dançar bêbedas, e acima de tudo…vejo um caixão aberto, sem nenhum corpo lá dentro. Uma vez que não há corpo, não há velório, e vou ter de fechar a sala”.
Os presentes fizeram um ar consternado. Afinal, até se estavam a divertir e ainda era cedo. Como tal, acercaram-se do solícito Funcionário, e disseram-lhe:
- Está enganado, senhor. Há, de facto, um corpo dentro desta sala, e estamos a velá-lo.
- “Mas onde é que está o corpo?”, perguntou o atónito Funcionário.
- Ali!
Todos os presentes apontaram para Rogério. Este, por uns momentos, ficou espantado, e continuou a meter música. Mas ao ver que ninguém dançava e que continuavam todos a olhar fixamente para si, acabou por desligar a aparelhagem. Depois, com um ar triste, foi ter com os seus amigos, e despediu-se, individualmente, de cada um. Houve lágrimas, e todos o abraçaram, efusivamente. Em seguida, Rogério entrou no caixão, deitou-se, e fechou a tampa, com a ajuda dos seus amigos. Antes de fechar os olhos, ainda reparou que Ricardo voltara a meter música. E pronto, é esta a história.
- É bonita. Vais escrevê-la?
- Acho que não. Vou para a praia.
- Fazes bem. Apareces lá no Bar Galhada, logo à noite?
- Claro! Gostava que me ajudassem a escrever uma letra pop, em português.
- Isso é uma óptima ideia! Ainda podes ir a festivais de Verão, e tudo!
- Eu sei! Além disso, estive a falar com os tipos da Flor Caveira, e eles precisam de arranjar mais uns Pastores Baptistas para a Editora.
- Já te converteste?
- Vou-me converter amanhã, já combinei com o Tiago Guillul. Podes ir assistir. Eu mandei, de resto, convites pelo Facebook para todo o pessoal.
-Boa! E vai haver música?
- Claro! Música, animação, e muita poética rock.
-Lá estarei!