quarta-feira, maio 31, 2006

E se depois...

Depois do dilúvio, o reflexo do tempo, escondido no fundo do poço.
Desaparecem as vertigens do último sonho, perdido num canto do olhar,
num entardecer sombrio, no brilho do estertor
quando começamos a acordar.

segunda-feira, maio 29, 2006

Angelus Novus

Neste rosto e neste corpo
estão contidos traços de Paul Klee
e Walter Benjamin.
Um bombom a quem os decifrar.

Hoje acordei assim. Não volto a comer carne de porco

Não me apetecia escrever nada, mas os outros directores do blog convenceram-me

domingo, maio 28, 2006

Logo(s)






















(Paul Delvaux, Les phases de la lune II, 1941;
A cidade adormecida, 1938)

Prêt-à-Porter


















(Gary Baseman, Infinity Girl)

segunda-feira, maio 22, 2006

Søren Kierkegaard, um gigante entre os postes

Nascido numa família que quase completava duas equipas de futebol (era o último de dezassete filhos) cedo se viu obrigado a jogar à baliza, por inclemência e incumbência dos irmãos mais velhos. Dos pátios do bairro saltou para as escolas dinarmaquesas onde, vendo-se livre da autoridade que constantemente o remetia para entre os postes, percorreu todos os lugares da táctica. Mas o seu destino estava talhado e, em breve, mesmo contra a vontade da namorada, que preferia vê-lo ao ataque, voltou para a baliza. Desde essa altura não mais a deixou, ao contrário da namorada, Regine Olsen, que não suportou a decisão definitiva de Søren. Mais tarde evocará, no célebre Diário de um sedutor, os motivos deste afastamento que muito veio agradar às fãs.
É seu hábito, nas conferências de imprensa, responder sob outro nome que não o seu (talvez para escapar às muitas apaixonadas que vai acumulando). A sua actividade desportiva vai muito além da prática, pois na verdade Søren é também autor de alguns tratados muito difundidos que versam sobre a arte de bem defender. Temor e tremor, o mais clássico de entre eles e que aborda a angústia do guarda redes antes do penálti, e Pensamentos Sobre Situações Cruciais, que trata pormenorizadamente do modo como sair ao jogador ou de entre os postes, são dois bons exemplos. No domínio do jogo, o sentimento de si e o domínio da área conferem-lhe a autoridade com que, de uma forma única, se lança para a bola e grita: “é minha”. Em suma, um gigante.

sábado, maio 20, 2006

Aleg(o)ria pastoril

















(Joel-Peter Witkin, Daphne and Apollo, 1990)

terça-feira, maio 16, 2006

O Pai Natal e os Vampiros Galácticos

Oiço a voz da Clarice, lá ao fundo, bem esganiçada.
Durante anos apeteceu-me esganá-la ou esborrachá-la contra a parede com a ponta do meu sapato.
A sua ascensão é lenta, mas segura, até ao final do mês ganhará a medalha da casca de cebola transparente, por méritos incomparáveis e serviços inegáveis prestados ao país.
Olho para as manchas de humidade na parede e lembro-me do documentário que vi no outro dia à tarde, enquanto me espreguiçava no sofá.
Era sobre um grupo de extraterrestres chamados "Illuminati" e a Nova Ordem Mundial.
Ao princípio ri-me com tamanha verborreia mental, ao saber que afinal
todos os líderes mundiais e pessoas importantes são enormes lagartos ou insectos gigantes
que tomam a forma humana para nos governar.
Enquanto me ecoam aos ouvidos as palavras do dito David Icke vem-me, quase sem notar, um pequeno sorriso aos lábios.
E ponho-me a pensar que esta dita Clarice, pessoa tão importante, que se espavoneia sem parar,
poderá talvez pertencer a esta raça, casta social.
Quase divertido, imagino-a a andar pelo soalho da sua casa, longe dos olhares alheios, de volta à sua forma original:
Um réptil gigante, grotesco, mirabolante, talvez com pequenas antenas para comunicar com o além!
E a antiga fantasia de a ver esmagada contra a parede da minha sala ganha novos contornos, novas realidades,
enquanto sonho com o meu triunfo final sobre este ser viscoso, repelente,
que povoa o meu dia a dia, o meu ambiente,
com o seu hálito desagradável, omnipresente,
transcendental.

domingo, maio 14, 2006

Treinador do Séc. XX - Edmund Husserl

O mister Husserl começou por treinar como guarda-redes, mas o estágio com o veterano Franz Clemens Brentano (da equipa do século XIX) fez emergir nele o interesse pelas tácticas futebolísticas. A troca definitiva das luvas pelo banco (algo que o seu tutor nunca levou a cabo) deu-se a partir do momento em que entrou em contacto com as estratégias revolucionárias do seu agora adversário Immanuel Kant. Recusando a divisão tripartida do método kantiano, Husserl postula um estilo de jogo ainda mais teórico baseado na redução prévia das condições empíricas de cada partida, mas que visa uma percepção mais rigorosa da movimentação de cada adversário, segundo um método fenomenológico que o próprio designou como “regresso às fintas mesmas”. Os jogadores devem ser capazes de reconstruir a cada instante todas as condições de jogo, sendo que as suas sessões de treino começam invariavelmente com o tracejar das linhas no campo (a redução husserliana implica a abstracção prévia do próprio terreno de jogo). Uma outra invenção de Husserl é o termo “intencionalidade” (usado hoje em dia por todos os comentadores televisivos), que designa uma singular iniciativa atacante baseada na dialéctica com a apreensão pura da manifestação dos movimentos dos adversários, a base do método husserliano. Nos últimos anos, o treinador alemão tem tentado resolver os problemas que esta dialéctica da inter-subjectividade levanta (nomeadamente no que toca aos laivos de genialidade dos jogadores mais criativos, que não podem ser teoricamente antecipados) sem voltar a cair na famosa faculdade de ju(l)gar de Kant, considerada como um resquício dos preconceitos tácticos da velha escola.

Sê bela e mantém-te calada






















(
Tamara de Lempicka, Andromeda, 1927-28)

sexta-feira, maio 12, 2006

Treinador do Séc. XIX - Immanuel Kant

Procedente da velha escola iluminista, efectuou uma verdadeira revolução no balneário, afastando algumas das estrelas do séc. XVIII, o que lhe ia custando o lugar de seleccionador. É considerado o pai da nova táctica, dividida em três áreas críticas: a pura, a prática e a da faculdade de ju(l)gar. A primeira área, a pura, visa optimizar matematicamente o posicionamento dos jogadores e a sua condição física; já com a prática pretende ajudar a responder à pergunta “que devo fazer?”, constantemente na cabeça do jogador antes, durante e após o jogo; finalmente, a faculdade de ju(l)gar tem como finalidade relacionar, com harmonia, as duas anteriores. Foi o responsável pelo lançamento, na equipa titular, de muitos jogadores que vieram a revelar-se autênticos prodígios. Depois dele, nenhum sistema táctico escapou à sua influência.

Novidades Desportivas

Continua a preparação para o grande jogo do ano, que colocará frente a frente os filósofos do Século XIX contra os filósofos do Século XX. Para já, os técnicos preferem esconder o jogo, não se sabendo ainda quais serão os respectivos 11 iniciais. Dos dois lados, não há lesões a lamentar, mas os jogadores têm-se remetido a um blackout imposto pelos respectivos misteres.
Os bilhetes para o jogo já se encontram esgotados há muito e a venda das cadernetas com os cromos dos jogadores tem suplantado em muito as expectativas mais optimistas. Como se sabe, 15% das receitas das vendas reverterá a favor da ADFP (Associação de Defesa dos Filósofos Portugueses).
Com o dinheiro das receitas, a ADFP pretende criar uma Reserva Natural que albergará os Filósofos Portugueses, essa mítica espécie, quase tão rara como os linces da Malcata.
Os interessados poderão observar os filósofos à distância, através de binóculos, enquanto eles passeiam pela Natureza.
Na reserva, será criada uma Área de Diversão, com muito vinho e amendoins, onde os filósofos trocarão uns bitaites entre si.
Muito importante será a criação da Sopa dos Pobres, reservada apenas a Filósofos Portugueses, que ajudará à sobrevivência diária destes simpáticos mamíferos.

quarta-feira, maio 10, 2006

Equipa de filósofos do século XX


TREINADOR: Edmund Husserl (D)

ONZE INICIAL:
1- Walter Benjamin (D) - guarda-redes
2- José Ortega y Gasset (E) - defesa-direito
3- Jean-Paul Sartre (F) - defesa-esquerdo
4- Ludwig Wittgenstein I (A) - defesa-central
5- Ludwig Wittgenstein II (A) - defesa-central
6- Henri Bergson (F) - médio-defensivo
7- Martin Heidegger (D) - extremo-direito
8- Paul Ricœur (F) - médio-centro
9- Michel Foucault (F) - ponta-de-lança
10- Jacques Derrida (F) - médio-de-ataque
11- Gilles Deleuze (F) - extremo-esquerdo

SUPLENTES:
12- Jürgen Habermas (D) - guarda-redes
13- John Rawls (USA) - defesa polivalente
14- Hans-Georg Gadamer (D) - médio-centro
15- György Lukács (H) - médio esquerdo
16- Maurice Merleau-Ponty (F) - médio polivalente
17- Karl Popper (A) - avançado
18- Emmanuel Lévinas (LIT) - ponta-de-lança

Equipa de filósofos do século XIX


TREINADOR: Immanuel Kant (D)

ONZE INICIAL:
1- Søren Kierkegaard (DK) - guarda-redes
2- Jeremy Bentham (ENG) - defesa-direito
3- Ludwig Andreas Feuerbach (D) - defesa-esquerdo
4- Karl Marx (D) - defesa-central
5- Friedrich Engels (D) - defesa-central
6- Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling (D) - médio-centro
7- Johann Gottlieb Fichte (D) - extremo-direito
8- Arthur Schopenhauer (D) - avançado
9- Friedrich Nietzsche (D) - ponta-de-lança
10- Georg Wilhelm Friedrich Hegel (D) - médio-de-ataque
11- Max Stirner (D) - extremo-esquerdo

SUPLENTES:
12- Franz Clemens Brentano (D) - guarda-redes
13- John Stuart Mill (ENG) - Defesa-direito
14- Wilhelm Dilthey (D) - médio-centro
15- Johann Wolfgang von Goethe (D) - todas as posições
16- Auguste Comte (F) - avançado
17- Ralph Waldo Emerson (USA) - todas as posições
18- William James (USA) - ponta-de-lança

Há vida depois do fim do campeonato

Com a realização da última jornada da Superliga, e uma vez que ainda tarda um pouco para começar o Mundial da Alemanha, estávamos prestes a desesperar sem saber o que fazer nos lânguidos finais de tarde de Primavera-Verão. Felizmente chegou-nos esta notícia de última hora: vai realizar-se muito em breve um encontro de dimensões supra-históricas que oporá a equipa de filósofos do século XIX à equipa de filósofos do século XX. Desde já, posso adiantar aqueles que serão os prováveis “onze iniciais” de cada uma das equipas, bem como a constituição do banco de suplementes. Não tardarei também em encetar uma análise pormenorizada dos dois plantéis, com as características fundamentais de todos os jogadores e respectivos técnicos. Podem, portanto, começar a coleccionar os cromos, pois temos aqui figuras que envergonhariam em toda a linha os Ronaldinhos, Lampards e Henrys das nossas praças.

terça-feira, maio 09, 2006

Grant Mclennan

Correndo o risco de transformar este espaço numa secção de obituários do mundo da música, não posso deixar de dizer que morreu Grant Mclennan, um dos vocalistas e líder, juntamente com Robert Forster, dos australianos Go-Betweens.
Os Go-Betweens fizeram alguns dos melhores discos pop dos anos 80, como "Before Hollywood" ou "Liberty Belle and The Black Diamond Express".
Grant Mclennan era o autor de metade do repertório das músicas da banda e escreveu, entre outras, canções como "Cattle and Cane", "In the Core of a Flame" ou "Streets of Your Town".
Este parecia ser um ano memorável para a música australiana, com a reedição do catálogo completo dos Triffids, a começar, já no dia 12 de Junho, com o álbum "Born Sandy Devotional". Para já, ficamos com a triste notícia do fim dos Go-Betweens.

quinta-feira, maio 04, 2006

O rato que r(o)uge

Persiste o medo dos fantasmas. Esta noite, enquanto me esforçava para dormir, vislumbrei, lá ao fundo, uma silhueta indefinível. Tentei ligar a luz, mas o maldito candeeiro tem uns botões pouco cooperantes. A silhueta aproximou-se, reparei numas luvas de boxe. Ainda pensei que fosse um espectro ou uma alma penada metafísica, mas, contrariando tal previsão, acertou-me em cheio no queixo, um gancho bem dado, sem hipóteses para os maxilares inferiores. Lá acendi a luz. Do vulto, nem o mais leve sinal. Voltei a desligar o candeeiro, mas o ar entrava-me pelas frinchas dos dentes partidos.
Esta manhã, tive de mudar a rotina. A sandes de torresmos fritos já não é apropriada para o meu estado actual e comi papas de aveia. O autocarro atrasou-se. No papel que tenho no bolso do casaco, um aviso escrito a vermelho: não esquecer de comprar um novo candeeiro para a mesa de cabeceira.

segunda-feira, maio 01, 2006

A minha inércia explicada às crianças

Durante o dia não corto os braços, talvez por pudor.
Deixo-os crescer, amadurecer ao sol,
para que me façam um pouco de sombra
quando precisar de descansar.