sexta-feira, abril 30, 2010

Fragmentos de um desencanto- 2ª Parte, e Conclusão

Dia 14
Já me andam a pressionar, lá na revista, para que lhes mande um texto.
Expliquei-lhes que andava com dificuldades de concentração, e que não conseguia concluir um conto.
Propuseram-me escrever um poema, cuja temática se debruçasse em temas da actualidade.
Pedi-lhes para me darem alguns exemplos de temas actuais, e mandaram-me, de seguida, alguns tópicos, por mail:
1-A Igreja, a visita do Papa a Portugal, pedofilia.
2-Crise económica, o desinteresse e a alienação da sociedade, e dos jovens.
3-O vulcão islandês.
4-Indie Lisboa.
5-Futebol- Benfica; José Mourinho; Campeonato do Mundo.
Amanhã começo a escrever um poema, que verse sobre esses assuntos.

Dia 15
Levantei-me tarde. Estava calor, saí de casa, resolvi escrever numa esplanada.
Encontrei alguns amigos, e duas colegas da Revista. Parece que também não conseguem escrever, nem trabalhar.
Copos.
Amanhã começo a escrever o poema.

Dia 16
Crise de inspiração.
Saí de casa, e fui dar uma volta.
Cinema, e copos.
Amanhã começo a escrever o poema.

Dia 17
Crise de resultados, no Championship Manager.
Terceira derrota consecutiva.
O meu novo reforço, Yannick Djaló, ainda não se integrou por completo no esquema táctico da equipa. Penso que terei de abandonar o sistema 4-4-2.

Dia 18
Escrevi as seguintes linhas, com o auxílio de um Dicionário de rimas:

Portugal, país riscado do mapa.
Andas por aí aos perdidos,
E a aguçar os sentidos,
Para a vinda do Papa.
Ergues o cravo à toa,
Agarras-te à crise como uma lapa,
E vais ao Indie Lisboa,
Enquanto te roubam à socapa.

Fiquei cansado, ao escrever estas linhas, e fui sair, para tomar um copo.

Dia 19
Tenho a certeza de que alguém me controla, de facto, o cérebro.
Chego ao fim do dia, e não me recordo de nada do que faço.
Hoje, só escrevi estas sete linhas:

“Oh, Portugal, país da saudade,
Em vez de pensares na produtividade,
E de almejares a modernidade,
És vendido a preço de saldo,
E ficas aí sozinho,
A venerar o Mourinho,
E o Cristiano Ronaldo.”

Tenho a certeza de que alguém me controla, de facto, o cérebro.
Chego ao fim do dia, e não me recordo de nada do que faço.
Conclusão:
Estou a transformar-me num zombie.
Segundo a wiki brasileira, “um zumbi é um morto reanimado, ou um ser vivo irracional. É um ser humano que permanece em estado catatónico, criando insegurança e medo nos vivos”.

Dia 20
O meu estado piora de dia para dia.
Hoje, só escrevi as seguintes linhas:

“Antes viver sob o chão português
Que debaixo de um vulcão islandês”

Não faço a barba, e deixei de tomar banho, com a preocupação de entregar os textos aos “Rapunzeís da Modernidade”.
Eles mandam-me mensagens, todos os dias, e perguntam-me quando lhes entrego os textos.
Ao que parece, nenhum deles escreveu, também, o seu texto.
O feiticeiro que me controla deve estar a fazer mais vítimas zombies.
Boas notícias:
A minha equipa de Championship Manager, o Foggia, passou à eliminatória seguinte da Taça de Itália, depois de ter vencido a Udinese, já no prolongamento.
Substituí o Ronaldinho Gaúcho pelo Nani, que marcou o golo da vitória.

Dia 21
Devido à minha condição de zombie diurno, deixei de escrever.
Tive uma ideia: se calhar, o feiticeiro que me controla, não consegue aceder aos meus sonhos, e só entro na sua esfera de poder alguns minutos depois de acordar.
Resta-me, apenas, uma solução: apontar, logo que acorde, as ideias que possa vir a ter durante o sono. Construirei os meus contos a partir daí, sem qualquer interferência exterior.

Dia 22
Saída nocturna. Bares. Discotecas.
Bebi demasiado, e vomitei.
Como tal, não consegui pregar olho.
Amanhã, dormirei, no mínimo, 12 horas, e apontarei todos os meus sonhos.

Dia 23
Dormi mais de 15 horas.
Esqueci-me de colocar uma folha, e uma caneta, ao pé da minha cama.
Não apontei ideia nenhuma.
Amanhã, sem falta, começarei a escrever o conto.

Dia 24
Apontei as ideias, mas só me saíram coisas estapafúrdias.
Eis uma delas:
“O cordel do peixe é falso se o atarmos a uma nêspera
E o combate de mongos começa sempre com o mesmo sinal:
Entrar a matar”
Ou outra:
“O Tetris joga-se dentro da caverna;
Entre estalactites e mitocôndrias
E por entre festins carnais”
Tive, igualmente, uma série de sonhos eróticos e húmidos.
Conclusão: acho que estou a ser atacado por Súcubos.

Dia 25
À beira do esgotamento. Adio a hora de ir para a cama, embriago-me, e tomo drogas recreativas, para atenuar a aflição. Já não consigo ler.
Só saio de casa ao final da tarde, para tomar uns copos com os amigos, durante os instantes em que não fico sob a influência zombie, e antes de sofrer um ataque de súcubos.
Os meus colegas da revista também andam com um ar pálido, e derrotado.

Dia 26
O Foggia desceu à segunda divisão, depois de uma época desastrosa. Terei de vender os melhores jogadores.

Dia 27
Reunião de “Os Rapunzéis da Modernidade”, à mesa de um bar.
Decidimos pôr termo à revista, devido à inexistência de textos publicáveis.
Alguns dos membros do grupo literário vão espairecer, um ano ou dois, para o estrangeiro.
Dizem que não há condições, neste país miserável, para a criação de uma revista de vanguarda, como a dos Rapunzéis.
Com o fim da revista, termino a minha actividade literária. Vou-me dedicar, a tempo inteiro, à carreira de treinador, no Championship Manager.

Dia 28
O Foggia está a recuperar, e tem boas hipóteses de poder subir de divisão. O meu novo reforço, Sinama Pongolle, tem marcado alguns golos decisivos.

Dia 29
Voltei a sair à rua, e fiquei algumas horas no café. Acho que estou um pouco melhor.

Dia 30
Conheci no café um grupo de pessoas deveras interessante. Tal como eu, adoram cinema. Ficámos a falar durante várias horas.

Dia 31
Os meus novos amigos são muito simpáticos. A certa altura, eu disse-lhes que, desde há muitos anos, tenho a ambição de produzir um filme.
No final da noite, tivemos uma ideia: vamos criar um grupo cinematográfico, que fará críticas de filmes, escreverá guiões de cinema, e produzirá filmes. Já temos um nome: vamos chamar-nos “Fitzcarraldo Produções”, em jeito de homenagem ao filme do Herzog.

Dia 32
O Foggia regressou à primeira divisão.
Estou bastante motivado com o meu novo projecto.
Amanhã começarei a escrever um guião para o filme.



Fragmentos de um desencanto- parte 1

Dia 1
Fui cordialmente convidado a colaborar na revista literária “Rapunzéis da Modernidade”. Evidentemente, aceitei.

Dia 2
Primeira reunião do grupo, numa mesa de café. Somos 10, ao todo. O líder do grupo apareceu mais tarde. Não sei qual é o seu nome, pois usa cerca de 8 pseudónimos literários diferentes. Não cumprimentou ninguém, e fumou todos os cigarros do meu maço, sem que tenha pedido autorização. Levou para casa um livro que eu trazia, “A Arte e a Natureza nas lições de Hegel sobre a Estética”.
Foi um início prometedor, pois estabeleci contactos com o líder do grupo.
No final, até me dirigiu a palavra, quando me pediu para lhe pagar as bebidas.

Dia 3
Não sei muito bem em que consiste esta Revista. Aparentemente, publica poemas, ensaios, críticas e contos, e querem que eu envie três textos, que sairão no próximo número.
Tenho uns cinco contos, guardados na gaveta da cómoda do quarto, escritos ao longo dos últimos oito anos. Amanhã, começo a revê-los. Escolherei aqueles que se enquadrem melhor no conceito da Revista.

Dia 4
Nada a assinalar. Hoje, não tive quase tempo de passar em casa, muito menos, de abrir a gaveta da cómoda do quarto, e de escolher os contos. Amanhã, talvez…

Dia 5
Copos, em casa do Luís.
Meia-final da Liga dos Campeões.
Amanhã, começo a escolher os contos, para enviar ao pessoal da revista.

Dia 6
Hoje, perdi o passe, e não pude sair de casa.
Ganhei mais um campeonato no Championship Manager, depois de uma luta complicada entre a minha equipa, o Foggia, e a Sampdoria, que só ficou resolvida nos últimos minutos, do último jogo, com um golo do meu reforço mais recente, o Balotelli.
Postei uns vídeos no facebook, relacionados com a lenda de Rapunzel.
Acho que começo a compreender o espírito da revista, e sinto-me motivado a escolher uns bons contos.
Amanhã, logo quando acordar, ponho mãos ao trabalho.

Dia 7
Acordei, com o som do telefone. Convidaram-me a ir a duas manifestações, durante a tarde.
Encontrei antigos amigos, e jantei com eles.
Cheguei tarde a casa, depois de uma noitada de copos.
Amanhã, começo a escolher os contos.

Dia 8
Tragédia!
Abri a gaveta da cómoda do quarto, e não havia nada lá dentro. Só encontrei mortalhas, antigos bilhetes de cinema, moedas estrangeiras, dois baralhos de cartas, fotografias tipo-passe dos meus tempos da Faculdade, e duas embalagens de bolachas, ressequidas.
Dos contos, nem vestígios.
Procurei em todo o lado – debaixo da cama, em cima dos móveis, na banheira, dentro do microondas…sem resultados.
Os contos desapareceram.
Vivo sozinho, em casa, e raramente recebo visitas.
Conclusão: o assalto foi perpetrado por gnomos.

Dia 9
“Os gnomos são espíritos de pequena estatura, amplamente conhecidos e descritos entre os seres elementais da terra”. #
“Com a evolução dos contos, o gnomo tornou-se na imaginação popular um anão, senão um ser muito pequeno com poucos centímetros de altura” #
# Source: wikipedia brasileira

Dia 10
Suspeito que os gnomos vivam em minha casa há vários anos. Isso explica o desaparecimento de diversos objectos, tais como:
3 molhos de chaves;
Um enxoval completo;
Uma carteira, que tinha, no seu interior, um cartão de crédito, o passaporte, carta de condução, cinco bilhetes de metro (dois deles caducados), uma embalagem de preservativos, e quatro euros;
Algumas peças de roupa, tais como: casacos, cachecóis, e uma boina vermelha;
Conclusão: os gnomos praticam métodos de contracepção. Terão, também, doenças sexualmente transmissíveis?

Dia 11
Lembrei-me de uma antiga namorada, a Marta, que me abandonou, durante a noite, enquanto eu dormia.
Provavelmente, foi raptada pelos gnomos, que roubaram, igualmente, a televisão (que comprei, a meias, com a Marta, e que desapareceu nessa mesma noite) e um leitor de DVD’s.
Isto explica o facto de a Marta nunca mais me ter atendido o telefone, e que me tenha respondido, apenas uma vez, com a seguinte mensagem:
“Não me procures mais, seu atrasado mental!”

Dia 12
Hoje, ao acordar, cheguei à conclusão de que tenho pensado em muitos disparates, ao longo dos últimos dias.
Tenho vindo a ser submetido a um elevadíssimo nível de stress. O facto de saber que terei de escolher alguns contos, e de ter o compromisso de os submeter a uma revista literária arrasa-me os nervos.
Por isso, a minha capacidade de discernimento tornou-se mais ténue, e cheguei à ideia disparatada de que uns gnomos me teriam assaltado a casa.
Ora, após uma análise mais elaborada dos factos, e de algumas horas de estudo, e pesquisa, cheguei à conclusão de que os gnomos não me assaltaram a casa.
Alguma vez um gnomo seria capaz de fazer essas travessuras?
Pois claro que não!
A causa de todos os meus males é outra, e descobria-a:
Tenho sido atacado por Sacis.
Segundo a wiki brasileira, o “Saci, ou Saci-Pererê, é um negrinho de uma só perna, que fuma cachimbo, e usa um barrete vermelho, que lhe dá os poderes milagrosos. Este espírito, em vez de ajudar na casa, é o responsável por uma série de tropelias, que incluem a ocultação de objectos, e o estrago de alimentos. Segundo a tradição, este espírito traquinas paga muito ouro para reaver o seu barrete, caso este lhe seja roubado pelos humanos”.
Notas: parece que o Saci estraga alimentos. Eis a razão de eu ter, quase sempre, uma quantidade incrível de alimentos putrefactos, em casa.
Nota ainda mais interessante: como disse atrás, desapareceu-me a boina vermelha. Ora, o Saci usa um barrete vermelho. Será que o Saci perdeu o seu barrete, ou confundiu-o com a minha boina? Se for o caso, e se eu recuperar o barrete do Saci, este pagar-me-á uma avultada quantia em ouro, para o reaver.
Esta hipótese abre-me grandes perspectivas. Se o Saci me der ouro, escuso de me candidatar ao Doutoramento, para ganhar uns trocos.

Dia 13
Afinal, encontrei todos os meus contos, dentro de uma mala velha, que levei uma vez, para casa dos meus pais.
Agora recordo-me bem: foi no Natal do ano passado, quando me convidaram a participar numa revista literária.
Levei os contos, para os rever, e para escolher três, que se enquadrassem no conceito da revista.
Isto leva-me a concluir o seguinte:
1- Já enviei os meus contos para outras revistas literárias. Como tal, não posso reutilizá-los;
2- Não se tratou, portanto, de um assalto. O caso é mais grave: alguém entrou no meu cérebro, e começou a controlá-lo, provocando-me perdas de memória, e de concentração.
Conclusão: posso esquecer a história do Saci, e do ouro. Terei mesmo de me candidatar a uma Bolsa de Estudo.

quarta-feira, abril 07, 2010

Mais uma história de Zombies


- Muito boa tarde. Linha erótica “Eterno Prazer”. Daqui fala a Solange. Em que posso ser útil?
- Hum…bem, quer dizer, não acho que este seja um início de conversa muito promissor…
- Muito promissor? Como assim? Fui antipática? Desejei-lhe boa tarde, disse de onde falava, indiquei-lhe o meu nome, e ofereci-lhe os meus préstimos…
-Não coloco isso em causa, mas não podíamos começar de um modo um bocadinho menos formal? Para já, podias tratar-me por “tu”, como se eu fosse o teu namorado, ou…ou…
- Ou amante?
- Sim, isso.
- Para isso, tinhas de dizer o teu nome. Ainda não te apresentaste.
- Não necessariamente. Bastava teres atendido, com um “olá, querido”. Olha… trata-me por “Rolf”.
- Rolf? Isso não é nome de cão?
- Achas? Rolf é um nome muito bonito.
- Pronto, olá, Rolf querido, fico muito feliz por ouvir a tua voz! Está melhor assim?
- Muito melhor! Mas com esta introdução toda, já perdemos um minuto e, neste caso, tempo é dinheiro! Vamos despachar-nos, até porque estou a ligar do telefone fixo, de minha casa, gasto dinheiro e, daí a pouco…hum…terei de desligar…por isso…o que trazes vestido?
- Queres saber o que eu trago vestido, Zé Carlos?
- Zé Carlos? Como é que tu sabes o meu…quer dizer, trata-me por Rolf, já te disse!
- Zé Carlos, a Luisinha está quase a chegar a casa, vinda do trabalho…
- Já te disse, trata-me por “Rolf”, e…que disparates são esses…como é que sabes que a minha mulher se chama…quer dizer, quem é a Luisinha?
- Oh, Zé Carlos, não fiques tão embaraçado! E não precisas de me mentir! Posso, também, garantir-te que a Luisinha ainda vai demorar uns 15 minutos a chegar a casa!
- Como é que sabes?
- Zé Carlos...já nem reconheces a voz da tua querida sogra? Fico triste…
- O quê? Dona Graciete?
- Muito bem, Rolf, acertaste!
- Que brincadeira vem a ser esta? Não podes ser a Dona Graciete, ela nunca trabalharia numa linha erótica, além disso…
- Oh, que preconceito parvo, Rolf! Isso nem parece teu! Tu estavas sempre a recriminar-me por votar nos partidos conservadores, por ser contra o aborto, os preservativos, a pederastia e a pedofilia, e por guardar um retrato do Salazar na mesa-de-cabeceira, ao lado da Bíblia…
- Mais um motivo para não acreditar que a Dona Graciete, tão religiosa, esteja a trabalhar numas linhas eróticas, para mais, depois de ter…
- Vá, vamos parar com essas conversas, que a minha filha deve estar quase a chegar a casa, Zé Carlos! Passemos aos preliminares: sabes o que eu tenho vestido? Um cinto de ligas, e uma lingerie irresistível…de pantera! Gostas? Já provaste pantera?
- Dona Graciete!
- Sim, querido?
- A Dona Graciete morreu há um ano!
- Sim, querido, é verdade. Mais precisamente, há um ano, e sete meses. Mais um motivo para estar excitada, já não faço sexo há muito tempo. Rolf, que cuecas usas? Estás com tesão? Descreve-me a tua pila! É grande? Circuncidada?
- Dona Graciete, vou repetir: a senhora está morta, eu próprio me certifiquei, de que ficava bem enterrada!
- Oh sim, Rolf, enterra-ma toda, já!
- Dona Graciete, pare com essa linguagem ordinária, credo! A Dona Graciete que me perdoe, mas a senhora já não era nenhuma beleza, quando me casei com a Luisinha. A senhora ainda era mais feia, 5 anos depois de nos termos casado. Agora, um ano e sete meses depois de estar defunta, nem quero imaginar a sua aparência…
- Não gostas de mulheres magras, Rolf?
- Dona Graciete, tem de concordar que um esqueleto vestido de pantera não deve ser propriamente a coisa mais apetecível…
- Oh Rolf, tu também não tens muito que falar…
- Como assim, Dona Graciete?
- Rolf, eu sei que tu eras bom rapaz, quando te casaste, mas não eras propriamente uma beleza…aquela pele meio escamada…
- São eczemas!
- Aqueles olhos, que é impossível adivinhar para onde se estão a fixar…
- Chama-se estrabismo!
- Aquele mau hálito insuportável…
- É por causa de uma úlcera…
- E, principalmente, a tua cara, Rolf! Parece que sofreu uma mutação do homem-elefante!
- É genético! Tive um tio-avô assim…
- Deves ter tido uma infância muito infeliz, Rolf!
- É verdade…
- As crianças deviam gozar contigo…
- Sim…
- E bater-te…
- Sim…
-E as miúdas riam-se da tua cara…
- Sim…
- Até os teus pais, não deveriam suportar a tua presença…
- Isso é mentira, mandaram-me viver com os meus avós para bem da minha saúde, para apanhar bons ares, na aldeia…
- Numa aldeia ao lado de uma central eléctrica, e de um matadouro?
- Pelo menos, cresci ao pé dos animais…
- Sejamos frontais, Rolf…os teus pais odiavam-te…
- Não exageremos…
- Os teus avós também te odiariam, caso não fossem cegos…
- Mesmo assim, também me batiam…
- Por isso, é que resolveste aplicar-te nos estudos, e fizeste tudo muito bem, Rolf! Tiraste o Curso de Economia, com uma média de 17 valores, e estás a trabalhar no mesmo escritório, há uma data de anos, a ganhar bom dinheiro, apesar de não teres amigos, e de os teus colegas te odiarem! Parabéns, Rolf!
- Obrigado…
- Como é que conheceste a minha filha? Ah já sei, ela tinha feito um aborto, o namorado deixou-a, e eu recriminei-a, estás a ver, Rolf, na altura em que eu era muito religiosa, e disse-lhe que era castigo de Deus, e que devia fazer penitência. Eu disse-lhe que ela tinha de casar com o homem mais feio à face da Terra, e ser-lhe fiel, e não conseguir praticar actos sexuais com o marido, por ele ser tão repugnante, e grotesco, e impotente…
- Dona Graciete, está a ir longe demais! Eu não sou impotente!
- Não és? Já fizeste sexo com a Luisinha? Vá! Não me mintas!
- Oh, Dona Graciete, uma vez estive quase, quando…
- Estiveste quase? Oh Rolf, por favor…
- É verdade, uma vez em que eu e ela estávamos nus, e eu ia…
- Ah, já sei ao que te referes! Foi quando quiseste ver a minha filha nua e, para isso, tiveste que pedir a um amigo, o Rui, para entrar num ménage à trois…pensaste que ela vos confundiria, no meio do escuro, e…
- Passemos à frente, Dona Graciete, não quero falar de tristezas, hoje tive um dia cansativo…
- Nem me fales disso, Rolf, eu também…
- Estou farto do meu trabalho…todos os dias, é a mesma coisa, e já anunciam despedimentos…
- Comigo, acontece a mesma coisa, Rolf…aqui, nas linhas eróticas, anda a entrar cada vez mais gente…só caras bonitas, sem currículo…agora, contrataram umas adolescentes, que morreram num autocarro, a caminho da viagem de finalistas, em Lloret del Mar…
- A sério? Aquelas que apareciam nas notícias?
- Sei lá, Rolf, já nem vejo notícias…são só desgraças…
- Pois, nem eu…só falam de despedimentos, escândalos sexuais na Igreja…
- Só vejo as notícias desportivas!
- Também eu!
- Como é que anda o Porto?
- Mal…anda a jogar pessimamente. As contratações não convencem, nem mesmo o Ruben Micael. O único de jeito que compraram foi o Falcão.
- Pois, mas acho que o estilo de jogo dele não se enquadra no futebol do Porto. Deviam ter contratado alguém mais parecido com o Lisandro Lopez.
- Também acho! Mas segues o futebol? Desculpa…posso tratar-te por tu?
- Claro que podes! Olha…leio o Record online, antes de entrar em serviço. Mas os meus superiores já me chateiam. Bloqueiam páginas, e estou com um bocado medo de ser mandada embora…
- Mas porquê?
- Rolf, já morri com uma certa idade, agora não posso competir com pessoas novas, com outras vivências, como essas moças que apareceram aí, vindas da viagem de finalistas. Pedem experiência de vida, e juventude, proactividade, espírito de equipa…
-É como no meu escritório…
- E para quê? Onde é que arranjo motivação? Chego ao fim do dia, cansada, e vou para a minha nuvem…nem me apetece tocar harpa…e mesmo que quisesse, os meus vizinhos queixavam-se do barulho, são cá uns idiotas…
- Então, estás no Céu?
- Eu sei lá…se comparar a minha situação com a de algumas pessoas que conheço, até devo estar…lembras-te da Dona Alzira?
- Claro! A sua vizinha da frente, que morreu uns meses antes da Dona Graciete?
- Sim. Ela estava a trabalhar comigo, depois mandaram-na para um Call Center. Agora, anda a vender seguros, numa companhia qualquer, a Cardif, ou algo do género…e mesmo assim, está com medo de ser despedida, e que a mandem para um gabinete de assistência jurídica, por telefone…
- Credo! Coitada da Dona Alzira!
- E agora nem ando a conseguir dormir, com estas preocupações todas.
- Nem eu.
- Antes de ir para a cama, e para adormecer, tenho de ver, pelo menos, três vídeos no facebook, e fazer dois quizzes.
- Olha, acontece-me a mesma coisa!
- Tens facebook?
- Claro! Eu adiciono-te!
- Fixe! Eu não tenho amigo nenhum no facebook. Também tenho Myspace, e só sou amigo do Tom…
- Eu tenho Myspace, mas só o utilizo para divulgar a minha banda de Folk/Rock/Experimental/Alternativo/Cantado em Português…
- Depois tenho de ouvir isso…mas olha….já vamos numa data de linhas de diálogo, e continuo sem perceber qual é o objectivo disto tudo.
- Como assim?
- Sei lá…estes diálogos deveriam ter algum conteúdo, alguma mensagem subjacente, algo que nos fizesse matutar, e crescer enquanto seres humanos. Afinal, já estamos na sétima página, de letras com formato “Calibri”, tamanho 11 e, até agora, tratou-se, apenas, de uma conversa absurda entre um homem, e a sua sogra morta. Se isto fosse um texto de um curso de escrita criativa, teríamos de arranjar alguma coisa mais concreta. Por exemplo…sei lá…quem somos nós, para onde vamos…
- Quem somos? Já explicaste…um homem, e a sua defunta sogra…
- Hum…não é suficiente, tem de haver mais conteúdo…deixa-me pensar…e que tal se isto tudo fosse um diálogo sobre a Morte…vou tentar fazer alguma pergunta séria…hum…diz-me uma coisa: estar morto é o contrário de estar vivo?
- Eu diria que estar vivo não é o contrário de estar morto…
- Que resposta filosófica, Graciete. Começo a ficar verdadeiramente interessado em ti. Eu acho que isto é o início de uma bela amizade!
- Rolf, deixa-te dessas tretas de citações cinematográficas! Já estou farta de ver o Casablanca!
- Yá, também eu! De que género de filmes é que gostas?
- Sei lá…gosto de muitas coisas…gosto do Kaurismaki, do Herzog…e tu, Rolf?
- Trata-me por Zé Carlos! Eu, por acaso, adoro o Herzog…e o Pasolini…
- Sim, mas prefiro o Pasolini da fase inicial, mais neo-realista…
- Adoro o Accattone, por acaso…olha, Gracinda, posso fazer-te uma pergunta?
- Claro, Zé Carlos?
- Gracinda, diz-me lá, outra vez, como estás vestida. A lingerie é mesmo de pantera?
- Pantera pura, Zé. E o meu cinto de ligas é preto.
- Hum…estou a tentar visualizar…parece-me delicioso…
- Já estás com tesão, Zé?
- Acho que sim…e o cabelo, está apanhado? E as unhas? Compridas?
- O cabelo está solto, e as unhas, pintadas de verniz preto…
- Oh, quem me dera ter-te aqui comigo, Graciete…
- Então, e a Luisinha, Zé?
- Ela não precisava de saber…eu escondia-te no armário…
- Oh Zé, que tonto…
- Olha, acho que a Luisinha está a chegar, tenho de desligar…Posso ligar-te mais vezes?
- Quando quiseres, querido…
- Podemos começar a falar de questões existencialistas, e do sentido da vida…
- Como quiseres, Zezinho! Olha, e para terminar, de que cor são as tuas cuecas?


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