terça-feira, maio 22, 2012


Rasmunsen era um pândego
Desde os tempos da encefaleia
Ou quando navegava no mar de Aral
Enquanto recitava o Jornal
Lendo notícias do MLK
Varrido a ácidos e geleia
Pelo círculo mântico jovial

Rasmunsen era um pândego
Pragejavam as velhas mulheres do atol
Fugindo das novidades do mercado abastecedor
Embaladas por tiros de metralha do vento norte

Chegam rumores dos sindicatos mecânicos
Dos amigos messiânicos
Ou dos poetas do urinol
Rasmunsen era um pândego -
Nos tempos com faculdade
Partia copos a tiros de comando
Perante o riso de indigentes
Sacro- impérios e decadentes
Os matulões do além karma
Semicerravam os olhos
E não era espuma o que viam ao fundo
Nem retábulos de ornamento
Como tu bem sabias naqueles tempos
Dos cântaros de cimento
Das casas, muradas de maus predadores
Rasmunsen era um pândego
Cantemo-lo, a uma só voz.

quarta-feira, maio 16, 2012

Romualdo decide emigrar


Romualdo decide juntar-se ao contingente da emigração.
Enche a mala de viagem à pressa, com as primeiras coisas que lhe aparecem pela frente, não vá mudar de ideias. Pares de peúgas desemparelhadas, camisas de riscas, calças aos quadrados, chapéus-de-chuva, óculos de sol, uma cana de pesca e um gorro para a neve, é tudo misturado compactamente, como os alimentos numa Bimby. Senta-se em cima da mala, conta trinta segundos muito lentamente; fecha a mala num golpe rápido e descansa durante um minuto. 

Romualdo sai de casa, mas não compra bilhetes de transporte para um lugar distante, pois não gosta de andar de avião, tem fobia a comboios, os autocarros provocam-lhe náuseas, não tem carro nem carta e não vai pedir boleia – os pais sempre o ensinaram a não falar com estranhos. De qualquer forma, não tem dinheiro nem conhece ninguém no estrangeiro. É um viajante e vai à aventura. Começa a sua caminhada.
Mas Romualdo sente vertigens quando anda muito a pé e custa-lhe afastar-se de casa. Basta andar dez metros e já lança um adeus choroso à sua bela e amada casa, situada num prédio velhote e a necessitar de obras urgentes.

Começa a andar ao pé-cochinho muito lentamente. Ao pescoço, leva uma placa que diz “Trabalho por comida/ Will work for food”…e em mais dez línguas, afinal Romualdo é um emigrante qualificado, teve estudos, toca piano e sabe falar francês e grego antigo.
Sobe a rua e vira numa perpendicular à direita. Continua a andar ao pé-cochinho e chega a uma travessa, segue em frente e vira na terceira ou quarta rua à esquerda. Sobe uma ladeira íngreme e vira na segunda rua à direita.
Está calor, sente-se cansado. É um viajante, mas tem fome e sede e começa a sentir dores no pé direito, aquele pé que suporta o peso todo do seu corpo e da sua mala. Chega a uma rua comprida e estreita. Pára. Olha atentamente em todas as direcções e fica agradado com o que vê. Sabe instintivamente que chegou ao seu país de destino.

Romualdo continua com muita fome e não lhe apetece abrir a mala. Lá dentro escondem-se duas bananas, mas suspeita que nesta altura já se mesclaram com a gabardine amarela.
Entra num estabelecimento comercial, vai ao balcão, dirige-se ao dono do estabelecimento e, com grandes gestos, aponta para a placa que tem pendurada ao pescoço.
O homem fita Romualdo sem saber em que língua falar e pergunta-lhe por gestos se está mesmo disposto a trabalhar em troca de comida.
Romualdo acena com a cabeça em sinal de assentimento e esboça-se, nesse mesmo instante, um enorme sorriso na cara do dono do estabelecimento. Sem dizer palavras, entrega a Romualdo uma farda de trabalho.

 A partir desse instante, começa a trabalhar seis dias por semana das 9 às 19, em troca de comida., que ingere avidamente durante a pausa de dez minutos de que dispõe para almoçar.
Por cima do estabelecimento vive uma velhota que arrenda quartos. Fazem um acordo gestual, no qual fica estabelecido que Romualdo poderá dormir de graça numa minúscula divisão que se encontra livre, nas águas furtadas.
Romualdo tem apenas de fazer as limpezas gerais do prédio todo, o que inclui tarefas tão díspares, como encerar as escadas ou limpar e desentupir as sanitas.
A nova vida é dura, mas não se queixa, deita-se satisfeito a olhar pela janela das águas furtadas do seu novo país, enquanto mata os percevejos que passeiam no colchão. A rua fica no sopé de uma elevação e Romualdo consegue ver, bem lá ao fundo, a sua antiga casa.
Nunca se deita antes das duas da manhã. Diverte-se a escrever no Facebook uma coluna diária a que dá o nome de “as peripécias de um emigrante”.

Os amigos acham-lhe muita graça.
Aos domingos tem a folga semanal e aproveita-a para conhecer a pátria de acolhimento.
Como as dimensões são muito reduzidas (resumem-se a uma longa e comprida rua), Romualdo percorre-a muito lentamente, a fazer o pino. Isso dá-lhe tempo de olhar com pormenor para cada uma das pequeníssimas idiossincrasias do seu país de acolhimento:
Ontem, postou a seguinte foto no Facebook, com a legenda:

“As bizarras ementas dos restaurantes locais”

Foi um sucesso retumbante – 60 likes, 40 comentários e 15 pedidos de amizade. Os amigos consideram-no um caso de sucesso. Trabalha muito, é empreendedor e ajuda a espalhar o bom nome da terra-mãe.

Também é bastante popular no país de acolhimento. Agrada ao dono do estabelecimento, que lhe enaltece o abnegado espírito de sacrifício e agrada à velhota arrendatária. Desde que se mudou para o seu edifício, o número de percevejos decaiu drasticamente.
Romualdo agrada aos restantes habitantes do país. Tornou-se uma celebridade desde que começou a calcorrear as ruas fazendo o pino. A fama espalhou-se e já são muitos os turistas que vêm especialmente para o ver, das ruas em redor, o que é bastante bom para o negócio.  

Hoje, um casal amigo passeia nas imediações. A rapariga pergunta, a certa altura:
- Olha lá, aquele não é o Romualdo?
Romualdo, que está de pernas para o ar, a fazer as suas deambulações domingueiras, também os vê, mas não pode acenar de volta.
O rapaz comenta para a namorada:
- Não é nada! Então não tens visto os textos dele? O Romualdo está a viver no estrangeiro! Para além disso, aquele rapaz anda de uma forma esquisita.
Riem-se.
A rapariga concorda:
- É verdade, que estupidez a minha! Vamos mandar uma mensagem de Facebook ao Romualdo, a dizer que encontrámos um rapaz muito parecido com ele a andar de pernas para o ar.
Ao que o rapaz responde:
- Achas? O Romualdo tem mais que fazer do que ler essas parvoíces. Não tens visto as histórias dele? São coisas muito mais giras e mirabolantes. Anda! Vamos para casa. Aqui não se passa nada.
Afastam-se.

Romualdo fica a olhar para o casal de amigos, que se afasta. Sorri de contentamento.
Diz entredentes:
- Quando souberam que eu vi os seus clones exactos, mas com cara de turistas apatetados a passearem feitos domingueiros, vão-se partir a rir!
Com estes pensamentos em mente, apressa o passo manual, que se tornou bastante hábil com a prática diária.
Sobe as escadas do prédio a grande velocidade, matando dois percevejos pelo caminho.




sexta-feira, maio 11, 2012

CAPÍTULO IV - ENCONTRO AMOROSO


Luís Nunes chega a um bairro residencial moderno, daqueles com condomínios fechados, jardins privativos e parques infantis ultra equipados.
São duas e meia da tarde. Luís Nunes olha para o impresso do folheto "MyMum", quer certificar-se que a morada está correcta. Consulta de novo o Guião Operativo, capítulo IV, aplicação CONCEPTIX2015. Sente um leve nervoso miudinho. “Se calhar exagerei no perfume”.

Luís toca à porta. Pelo intercomunicador, alguém pergunta:
- Quem é?
Obedecendo ao disposto no Guião Operativo, Luís Nunes responde, com um tom de semi barítono desafinado:
- Boa tarde! Sou o técnico Luís Nunes, venho por âmbito do Processo de Habilitação de Progenitores, aplicação CONCEPTIX2015.
- Ooooh! Entre, entre, por favor!

Luís entra no prédio, um edifício asséptico, adornado por flores artificiais e com um forte cheiro a desinfectante.
Sobe por um elevador silencioso cheio de luzes a marcar os andares que lhe lembra uma nave espacial.
Luís Nunes sai do elevador e depara-se com um cenário um tanto ou quanto bizarro, mas expectável, de acordo com o Guião Operativo, página 67.
Isabel está à umbreira da porta e usa uma lingerie provocante, que parece em tons de tigresa, assim à primeira vista desarmada.
Tem a perna dobrada e masca uma pastilha elástica.
Com uma voz que pretende ser sensual, mas que perde por completo essa intenção, ao engolir a pastilha e ficar, por isso, com um incontrolável ataque de tosse, Isabel diz num tom sussurrante e algo esganiçado, nos intervalos em que consegue respirar do ataque de tosse:
- Gostas de tigresa, ó jeitoso? Já provaste?

Luís Nunes fica desarmado com a visão que se lhe depara pela frente, não tanto pelo conjunto tigresa, que estava mais que previsto no Guião Operativo, mas sim com a cara de Isabel.
A verdade é que Isabel parece um cavalo.
E Luís Nunes não se sente atraído por cavalos. Não é nada de mal. É uma questão de gostos. O gosto de Luís Nunes não alberga mulheres com aspecto equídeo, muito menos estando vestidas de tigresa.
Isabel parece mesmo um cavalo. E nem sequer parece um cavalo bonito e lustroso.
A cavalo dado não se olham os dentes. Mas é impossível não olhar para os dentes de Isabel. É que parecem mesmo os dentes de um cavalo. Mas os dentes de Isabel não são brancos, estão estragados, são tortos- salientes, nada elegantes.
E o queixo. E os olhos, grandes, esbugalhados, prestes a saltar das órbitas.
E depois aquele tom de voz, que se insinua por entre os ataques de tosse. Parece relinchar.
E as pernas! Dobradas, em posição de ataque, prontas a escoicear o pobre do Luís Nunes.
Acima de tudo, o que choca mais Luís Nunes é o conjunto. Os cavalos, honra lhes seja feita, são harmoniosos. Aquele cavalo nada tem de harmonioso. Talvez seja por causa daquela roupa de tigresa. Talvez seja por causa daquele perfume barato, que invade as escadas e coloca em posição de fuga o forte cheiro a desinfectante, que anteriormente dominava o prédio.

Isabel quebra o encanto. Está recuperada do ataque de tosse e pode voltar a assumir o comando das operações. Pergunta, num tom decidido, que disfarça um certo nervosismo de mulher que nunca antes esteve em situações de tamanha intimidade.
- Então não entras, ó jeitoso? És tímido?
Isabel entra confiante com as deixas ENGATIX69, opção F. É uma escolha aceitável. Com estas palavras, puxa Luís Nunes com força para dentro de casa. Não o puxa bem para dentro de casa. Não sabemos se é devido a uma vista fraca ou por óbvios problemas de coordenação, mas a verdade é que Isabel puxa Luís Nunes com muita força e vigor, não para dentro de casa, como era o objectivo proposto, mas sim de encontro à parede do vão das escadas.
- Oh, desculpa, querido!  

Luís Nunes fica aturdido e meio atarantado. Isabel volta a puxá-lo com muita força, desta vez acerta e entram mesmo em casa, mas a verdade é que Isabel puxa Luís Nunes com muita força mesmo e ouve-se uma articulação qualquer do seu braço a estalar:
“Ai ai ai”, diz Luís, como que a confirmar a dor.
“Oh querido, sou mesmo desastrada. Será que já não estás ansioso por me ver?”.
Parece-nos que esta frase é dita com segundas intenções, o que não é de estranhar, pois há algumas opções do género na aplicação ENGATIX69.
Isabel pretende verificar o grau de masculinidade de Luís Nunes, por isso direciona a mão para as regiões do seu baixo-ventre. Isabel direciona a mão com tanta força que dá uma pancada seca e vigorosa nas regiões púdicas de Luís Nunes.
Luís Nunes, que antes vira estrelas sem serem no céu, mas sim no vão das escadas de um prédio moderno de um moderno bairro residencial e vira mais estrelas e cometas quando Isabel lhe puxou o braço com um amor mais que vigoroso, não aguenta tantas emoções e solta um grande e profundo vómito, que se encontrava guardado nas suas entranhas desde que vira Isabel pela primeira vez.
“blaaah….”, é o som que se solta das entranhas de Luís Nunes, com um tom que em nada se assemelha a um semi barítono desafinado.

Isabel parece confundida e dá uma rápida olhadela ao Guião Operativo:
- Mas…não sabia que os fluídos saíam pela boca…isto é que é o sexo oral? E não sabia que podíamos ter bebés a fazer sexo oral! Espera! Luís Nunes, não deixes que essa matéria preciosa se desperdice no meu tapete persa!
Luís Nunes continua a vomitar descontroladamente. Isabel despe o fato de tigresa:
“Mas o que estás a fazer, mulher?”, Pergunta Luís Nunes, num tom sussurrante e algo esganiçado, nos intervalos em que consegue respirar do ataque de vómitos.
- Então não estamos na fase nº2 da Habilitação de Progenitores? Troca de fluídos?

Luís Nunes está recuperado do seu ataque de má disposição e pode assumir o comando das operações:
- Isabel, não leste o Guião Operativo, no capítulo do “reconhecimento de terreno de jogo”? Página 104 e seguintes, até tem instruções…
Isabel pega no Guião Operativo e fica um tanto ou quanto envergonhada:
- Desculpa, confundi as matérias de terrenos de jogo e trocas de fluídos…Mas não vamos criar uma Nota de Incidente por causa de uma coisa tão parva. Vá…toca a começar a fase nº2 da Habilitação de Progenitores.
Isabel pega no Guião Operativo:
- Hum…criar um ambiente romântico…sugestões…espera, querido Luís Nunes, já volto, vou só ao quarto mudar de roupa…
A expressão “mudar de roupa” é relativa, pois Isabel encontra-se sem preparos na roupa desde que tentara acasalar com os fluídos estomacais de Luís Nunes.
Luís senta-se no chão e pensa: “o que sairá agora daqui?”.
Isabel volta passado cinco minutos.

Se a visão de uma figura equídea vestida de tigresa causa algum espanto e consternação, os sentimentos intensificam-se se pensarmos num cavalo vestido de enfermeira.

E é o caso. Isabel veste uma farda branca completa de enfermeira. Nem se esquece do kit de primeiros socorros. Volta, por isso, a assumir o comando das operações. Pergunta, num tom decidido, que disfarça um certo nervosismo de mulher que nunca antes esteve em situações de tamanha intimidade:
- Então ó jeitoso? A enfermeira pode medir-te a tensão? Depois quero que me dês uma injecção com toda a força, ouviste?
A frase é dita com segundas intenções, o que não é de estranhar, pois há algumas opções do género na aplicação ENGATIX69
Isabel pretende verificar a masculinidade de Luís Nunes, por isso direciona-se para a região do seu baixo-ventre.

Isabel não compreende o significado das metáforas. Por isso, quando lê no Guião Operativo esta deixa de engate não percebe o seu sentido subjacente.
Isabel segura nas mãos um medidor de tensão. Baixa as calças de Luís Nunes e aperta o medidor sabemos nós bem onde.
Luís Nunes sente um aparelho a apertar-lhe o membro viril. Tenta pensar em coisas que o relaxam, capas de discos com pessoas em roupa interior, recorda-se da lingerie de tigresa e vem-lhe quase um vómito à boca. Toca com a mão ao de leve no seu membro viril. Confirma-se. Está totalmente fora de serviço.
Isabel sente-se atarantada e continua a dizer todo o género possível de metáforas medicinais.
Nada resulta.

Depois pega no Guião Operativo, folheia-o no capítulo das soluções anti natura de último recurso e diz:
- Espera querido Luís Nunes, vou só ao quarto mudar de roupa
Quando Isabel volta com um bigode falso e com roupa de canalizador e diz, com voz grossa:
- É aqui que se mudam os canos?
Luís Nunes diz, muito simplesmente:
Desiste querida, nunca tive posters no quarto com os Village People. Não pertencem à minha galeria de arquétipos de beleza.
Isabel sente uma lágrima a descer-lhe pelo rosto. Pergunta:
- Querido, o que vai ser de nós?
Luís Nunes responde com fleumática calma:
- Acho que não nos resta nada a não ser preencher a Nota de Incidente.














CAPÍTULO III - OS PRESENTES


CAPÍTULO III – OS PRESENTES

Aviso à navegação: este capítulo é bastante aborrecido mas é necessário, pois explica alguns detalhes técnicos que teremos de conhecer.

Um conselho: o leitor deve arranjar três amigas, de preferência que sejam velhotas Jeovás. De certeza que o leitor tem dezenas de amigas velhotas Jeovás. De seguida, o leitor pede às suas amigas que cantem em uníssono algumas das frases aqui contidas. Mais à frente já explico melhor. Obrigado.

Entrando na casa, Dona Odete, Dona Natércia e Dona Lucinda vêem o carrinho montado e prostrando-se, prestam-lhe homenagem.
Dona Odete exclama:
- Que carrinho tão bonito! Tem mesmo a cara dos papás!

As outras boas senhoras concordam em uníssono.
Dona Natércia acrescenta:
- A capa impermeável é a carinha chapada da mamã…
Dona Lucinda remata:
- Sim, mas o chassis versátil com pega unida sai mesmo ao papá.
As três senhoras olham na direcção de Luís:
“Deve sentir-se muito orgulhoso”, diz uma delas, com um sorriso babado.
“E tem razões para isso, fez um excelente trabalho”, diz outra delas, com um sorriso igualmente babado.
“Vai dar um grande papá”, diz a terceira, com um sorriso semelhante às parceiras.

Luís já não se espanta em demasia. Afinal, o dia tem sido fértil em surpresas. Mesmo assim, não evita exclamar, num tom de quem não quer a coisa:
- Olhem lá…estavam para aí a falar da mamã. Desculpem desapontar-vos, mas eu não tenho namorada. Caso venha a ter algum filho e este carrinho seja por ele utilizado, nada nos permite dizer que a capa impermeável tenha a carinha chapada da mamã.

As três velhotas sorriem entre si. Dona Lucinda diz:
- Ai seu maroto, já quer saber o que são as prendas, não é?
Só nesse instante é que Luís repara que cada uma das boas senhoras tem um cartão nas mãos. Quer dizer, Luís já tinha reparado nos cartões, mas pensava que se tratavam dos já costumeiros impressos Bíblicos usados para espalhar a palavra.
Dona Odete pergunta com um sorriso:
- Está a olhar para as prendas, não é? Vamos lá, não vou prolongar a sua ansiedade. Ai, estou tão feliz por poder dar-lhe a minha rica prendinha!
Dona Natércia exclama:
- Oh Odete, dá a prenda ao jovem! Eu também estou em pulgas por mostrar a minha prenda! Ele vai adorar!
Dona Lucinda exclama:
- Calem-se as duas! E eu? Também quero dar a minha prenda! Aposto que vai ser a preferida do menino Luís Nunes!

Dona Lucinda faz um sorriso maroto de boca aberta bastante audível, mas a dentadura não aguenta a magnitude escala 9 deste sorriso Colgate e resolve fazer uma visita ao chão da casa de Luís.
Dona Lucinda não se perturba e continua a sorrir com um sorriso avermelhado, sem dentes. Baixa-se, pega na dentadura e volta a colocá-la na boca, como se nada fosse, mesmo estando a dentadura cheia de pelos de cotão que se haviam acumulado no chão da casa nos meses precedentes.
Dona Odete, fazendo uma pequena vénia, entrega o seu impresso, explicando:
- Senhor Luís, tenho a honra de o apresentar às soluções MyBaby, do BancoPoupança.

Atenção ao leitor: é aqui mesmo, nesta parte do texto, que entram as velhotas Jeovás. Uma das velhotas deve dizer o texto, que será intercalado pelas outras. Podem fazer coros gospel ou doo woop. Obrigado.

Dona Odete: As soluções MyBaby disponibilizam uma vasta gama de produtos e serviços essenciais para a educação do seu bebé. Servem para gerir de forma individualizada as despesas que surgem na preparação do nascimento e educação do seu filho.
Dona Natércia: E englobam o quê?
(Dona Lucinda fazendo coros) : o quê?
(neste momento, cada uma das velhas começa a falar, como locutoras de um desafio de futebol)
Dona Odete: Englobam cartões pré pagos e linhas de crédito com finalidades específicas. Como o Luís já tinha contas bancárias, transferiu-se todo o dinheiro dessas contas para a solução MyBaby. A partir deste momento, esse dinheiro servirá para a educação do seu bebé. E essas linhas de crédito servem para quê? Para todo o género de despesas. Em primeiro lugar, o Luís começará amanhã um curso de preparação para o parto. Com a solução MyBaby, esse curso terá um desconto de 10%, desconto esse que aumentará em 5 % caso o Luís angarie cinco amigos para a paternidade, nos próximos dois meses.
Dona Natércia: Também pode comprar um Kit bebé constituído por duas bolsas que servirão para guardar a caderneta de pediatria do seu filho…
Dona Lucinda: As soluções MyBaby também têm protocolos com outras lojas. Por exemplo, lojas de fotografia: como poderá ver no impresso, as lojas de fotografia encarregam-se de documentar todo o processo do crescimento do bebé, desde o momento da concepção, passando por todas as fases da gravidez e do crescimento. Tudo isto com um desconto de 10%.
Dona Odete: E onde é que o Luís e a mamã vão guardar as fotografias? Em molduras, pois claro. A loja de molduras Happy Baby fará grandes descontos para os portadores deste cartão.
Dona Lucinda: E a educação da criança? E as roupas? E…

Dona Lucinda é interrompida por Dona Natércia, que acrescenta:
- É claro que todas as despesas da criancinha não podem ser suportadas pelas míseras contas bancárias actuais do Luís. Por isso, vou oferecer-lhe um outro pack: o pack “My Job”. O pack “My Job” inclui uma série de entidades empregadoras que têm protocolos com as entidades bancárias promotoras do cartão “My Baby”.
Dona Odete: A partir de 2ª feira, o Luís começará a trabalhar nestes locais que estão descriminados no cartão. Os pagamentos serão debitados directamente para as contas do My Baby, para que o Luís não se sinta na tentação de gastar o seu salário em actividades inúteis.
Dona Natércia: O contrato será feito com objectivos e caso a educação do seu filho esteja a correr bem, poderá não ter descidas salariais, desde que conceba uma segunda criança, num prazo a estipular com a entidade patronal. Tudo isto terá de ser muito bem estudado por si, Luís e pela sua futura esposa, a…
Dona Natércia é interrompida por Dona Lucinda, que acrescenta:
- Chegou agora a altura de falar da sua futura esposa. Para isso, vou apresentar-lhe o cartão “My Mum”. Luís: está pronto para uma relação? Claro que está, senão nunca teria recebido um carrinho de bebé. Mas nem toda a gente consegue tomar bem conta dos carrinhos de bebé nem da criança que neles estará incluída Como tal, iremos de seguida apresentar a futura mulher do Luís:
Dona Odete: Trata-se da Isabel e é uma excelente pessoa: limpa, asseada, sem vícios, sem maus pensamentos derrotistas, proactiva, empenhada, com fortes instintos maternais e racionais, apegada ao lar, com emprego estável, com muito amor para dar e com grandes desejos de os receber.
Dona Natércia: A Isabel vem equipada com o Kit Grávida, que permite que seja acompanhada junto dos melhores hospitais do país, com descontos em consultas de obstetrícia e todos os demais cuidados médicos necessários.
Dona Lucinda: A Isabel tem uns pais abonados monetariamente, que estão mais que dispostos a contribuir mensalmente com generosas ofertas para a sua conta no Kit My Baby. Os pais da Isabel têm protocolos com amigos de influentes instituições de todo o país, que estarão receptivos a educar e a empregar futuramente o vosso filho. A Isabel é totalmente isenta de antecedentes sexuais e todo o seu instinto e motivações estão focados apenas na concepção e educação da criança.
As três amigas em coro: Luís, parabéns pela sua magnífica esposa!
As três amigas batem palmas e fazem uma vénia a Luís. Depois, uma delas diz:
- Amigas, vamos embora que o Luís tem muito que fazer! Daí a cinco horas vai bater à porta da sua futura esposa e precisa de estar em forma!
As três amigas esboçam sorrisos pecaminosos, que deixam Luís perturbado. Depois, seguem em direcção da porta. Dona Natércia ainda exclama, antes de sair.

- Ah, antes que me esqueça: aqui tem as Notas de Incidente, que tem de preencher diariamente caso corra alguma anomalia. Boa sorte!
Com estas palavras, as três testemunhas de Jeová saem de cena.
Luís olha para as Notas de Incidente. Depois diz em voz alto:


- Como é que se chama mesmo a mãe do meu filho?

quinta-feira, maio 03, 2012

Capítulo 2 - A CLIPJUT 54


Luís Nunes pousa o embrulho sem o abrir. Para quê? Já sabe o que se esconde por dentro daquele papel vermelho. Luís Nunes gosta de receber prendas, sempre gostou. Mas quando era pequeno nunca gostou de casinhas de bonecas, preferia os Masters of Universe. Teve uma fase de indefinição, por volta dos oito anos, quando ia às escondidas pentear a crina do pequeno pónei da sua prima direita. Fora isso, nunca lhe deu para pegar em Nenucos, nem nunca lhes deu banhos, nem nunca lhes vestiu uma nova peça de roupa. Por isso, depois da surpresa inicial, considera o carrinho de bebé uma prenda falhada, como quando os pais lhe ofereceram o Ken, num longínquo Natal, pensando tratar-se do He-Man.

Luís Nunes vai para a cama e tenta recuperar o sono perdido. Pensa em coisas que o relaxam, o ciclo de vitórias do seu clube de futebol favorito, ou uma lista de 10 álbuns que metam roupa interior na capa. “Vejamos”, pensa…”será que o Undercover, dos Rolling Stones se pode considerar uma capa com roupas interiores? É duvidoso…mas os Sparks têm definitivamente uma capa que inclui roupas interiores…e aquela capa dos Xiu Xiu?”
Luís costuma adormecer facilmente com este género de pensamentos, como se estivesse a contar carneirinhos no campo. Mas nesse dia opera-se uma estranha mudança no seu espírito e no seu corpo. São nove da manhã de um sábado chuvoso e Luís só quer levantar-se da cama.

Estranhamente, é invadido por este pensamento:
“E se eu fosse ler o Guião Operativo? É capaz de ser giro”.
Dito e feito. Luís levanta-se da cama e tem o cuidado de vestir um roupão. Pensa que não deve andar na casa sem preparos no corpo, afinal acabou de receber um carrinho de bebé.
Luís pega no Guião, que atirara para um canto da casa minutos antes. Começa a ler atentamente:

GUIÃO DE HABILITAÇÃO DE PROGENITORES - UMA BREVE INTRODUÇÃO
O processo de Habilitação de Progenitores deriva de um estudo e análises prévias que permitem concluir com segurança que um indivíduo possui determinadas aptidões para exercer com graus satisfatórios o mister de Progenitor.
GLOSSÁRIO:
ABERTURA DA PROGENITURA: A progenitura considera-se aberta no momento da sua aceitação e no lugar do domicílio do progenitor.
ACEITAÇÃO DA PROGENITURA – acto pela qual é verdadeiramente adquirida a qualidade de progenitor. É tácita e ocorre, regra, geral, com a fase da Anunciação e da chegada do carrinho de bebé.
CASOS ESPECIAIS DE PROGENITURA - Se o progenitor possuir:
1- Conta bancária.
2- Vontade de trabalhar.
3- Razoável falta de rumo, mas uma vontade indomável de dar a volta à situação, mas sempre com uma bondosa e saudável resignação

Então, estamos perante um CLIPJUT54 (ver página 54 e seguintes do Guião)

“Outra vez a história da tal CLIPJUT54”, pensa Luís para com os botões do roupão, que não tem nenhuns.
Luís salta algumas páginas do Guião Operativo e segue directamente para a 54, onde vislumbra o seguinte título:

CLIPJUT 54, OU OS PRECÁRIOS PROMISSORES

A CLIPJUT54 caracteriza um caso muito especial de progenitores. São os progenitores precários promissores, cujas características especiais estão elencadas no prefácio deste Guião.
Os CLIPJUT54 (passaremos a tratá-los deste modo, para facilitar o nosso raciocínio e para poupar páginas, porque o papel custa dinheiro e também se gasta mais tempo a escrever precários promissores do que CLIPJUT54 e tempo é dinheiro) são verdadeiros ACTIVOS IMOBILIZADOS RECUPERÁVEIS. São activos imobilizados porque, regra geral, não trabalham e estão expostos a todo o género de vícios inerentes à ociosidade. Fartam-se de opinar no Facebook e não precisam de ir às promoções dos supermercados nos Feriados porque podem ir todos os dias, uma vez que não trabalham.

Todavia, estes activos imobilizados são recuperáveis por via das características nº 2 e 3 expostas aqui atrás. Ou seja, possuem uma certa vontade de trabalhar, mas não sabem muito bem onde, pois também possuem uma razoável falta de rumo. Por isso, tudo o que virá à rede é peixe, ala ala que nós aceitamos qualquer coisita. Para além disso, os CLIPJUT 54 têm uma vontade indomável de dar a volta à situação, mas sempre com uma bondosa e saudável resignação. A característica nº1 (conta bancária) é bastante útil, mas será falada mais à frente.
Concluindo, os CLIPJUT 54 são uns poderosíssimos ACTIVOS FINANCEIROS e representam um FUNDO DE INVESTIMENTO com retorno a curto/ médio prazo.
Como tal, os nossos técnicos encontraram uma série de soluções que visam rentabilizar ao máximo este potencial em cativo.

Vamos falar da solução nº1 – O KIT BEBÉ PROACTIVE 2012.
Esta solução tem início com o procedimento nº1, o chamado CNOOL66H, ou seja, A ANUNCIAÇÃO. Este procedimento é levado a cabo por técnicos especializados que se encarregam de fazer a distribuição dos carrinhos de bebé, modelo SB392, dando-se assim início ao processo HP.
O CLIPJUT 54 começa a sentir os primeiros sintomas de TPP instantes depois de receber o carrinho. Deixa de se sentir cansado a partir das 8 da manhã, mesmo que tenha dormido apenas duas horas e sente um irresistível impulso de começar a montar o carrinho de bebé…

Luís pára a sua leitura, fica com síndrome de mãos irrequietas e sente um terrível impulso de abrir a encomenda, desembrulhá-la e montar o carrinho de bebé.

Dito e feito. Luís, que até poucos minutos antes sempre fora considerado o homem dos dois pés esquerdos no lugar das mãos devido à sua gritante falta de jeito com qualquer tarefa manual, começa a montar o carrinho de bebé a um ritmo ultra sónico e olhem que isto não é tarefa para todos, uma vez que estamos a falar de um modelo SB392, ultra moderno, jantes de liga leve para andar mais depressa nas calçadas da cidade, o chassis versátil ultra compacto com pega unida, a alcofa com Kit Car e rede mosquiteira, mais a cadeira Auto-Fix I-Move Gr.0+ com sistema de montagem/desmontagem com uma só mão, que roda a 360°. Não esqueçamos que o carrinho inclui uma vasta gama de acessórios: saco quente, bolsa coordenada com vestidor de viagem, capa impermeável e cesto porta-objectos, tudo com um desconto de 10 % caso o valor total de compra ascenda aos 1000 euros, tudo num novo e exclusivo sistema combinado, para pais de gosto requintado.

Luís monta a cadeira em dez minutos, sem interrupções, sem descansos e sem pausas para cafés ou outros vícios, cumprindo assim, na íntegra, o disposto no CNTOA9, sem haver lugar, como tal, a uma nota de incidente.

Nisto, tocam à porta, conforme a aplicação DDS-A19, explicada no Guião Operativo, página 56.
São as simpáticas e sorridentes testemunhas de Jeová e vêm adorar o carrinho e dar os úteis presentes que serão explicados na próxima aplicação, a

INCN74

terça-feira, maio 01, 2012

Guião Operativo de Habilitação de Progenitores -1


CAPÍTULO 1 – ANUNCIAÇÃO

Luís Nunes é um Homem Médio, com todos os defeitos do Homem Médio e com algumas virtudes prévias:

. Conta bancária.

. Vontade de trabalhar.

. Razoável falta de rumo, mas uma vontade indomável de dar a volta à situação, mas sempre com uma bondosa e saudável resignação.

Numa manhã de sábado, quando Luís Nunes tem à volta de trinta primaveras no seu currículo vital, tocam-lhe à porta insistentemente.
Luís não faz caso. Uma chuva suave molha tolos, aliada a uma ressaca de proporções consideráveis, advinda de uma noite simpaticamente prolongada, convidam a uma estadia no fundo do vale dos lençóis.
O seu sonho reparador é acordado por um TRIMMMM muito estridente, que se transforma em TRIMMMM TRIMMMM TRIMMMM quando se demora a levantar da cama para abrir a porta a tão incómodas visitas matinais.

Decide-se a levantar da cama, não sem antes se espreguiçar muito lentamente, o que leva a que os TRIMMM se multipliquem mais umas quantas vezes.
“Já vai, já vai”
Luís levanta-se da cama nos mesmos preparos com que se deitara, ou seja, sem preparos e sem roupa no corpo.
Não pretende estar com grandes cerimónias, pensa tratar-se do mesmo trio de sempre de velhas senhoras Jeovás, que o presenteia com um salmo e uma interpretação da Bíblia a um ritmo semanal.
Abre a porta.
“Ó Dona Odete, Dona Natércia e Dona Lucinda, desta vez vieram mais cedo do que o costume. Qual é o salmo do dia e qual….”

Luís não acaba a frase, pois encontra-se frente a frente com um senhor de bigodes farfalhudos. Depressa se apercebe do erro cometido. O homem de bigode em nada se assemelha a um membro de grupo de propagação matinal da palavra do Senhor.
Luís tenta manter a compostura exigível para ocasião tão solene. Tossica, para aclarar a voz e num tom que pretende ser um tanto ou quanto ríspido e indiferente, mas que se concretiza num falsete pouco convincente, dispara numa nota fora de escala:
- Pois não. Queira desculpar-me pelo atraso com que demorei a abrir a porta. O que deseja?

O seu interlocutor entrega-lhe um impresso para as mãos e responde num nem sucedido tom ríspido e indiferente:
- Encomenda para o 3º B. Luís Nunes. Estou a falar com Luís Nunes?
“Então é isso”, pensa Luís para com os seus botões. Serviço de entregas. As peças do puzzle começam a encaixar-se e pode compreender finalmente porque é que o senhor que se lhe apresenta pela frente naquele sábado matinal enverga uma camisola vermelha, com letras brancas garrafais, que dizem “Serviço de Entregas”. O seu raciocínio lógico chega ao corolário definitivo quando repara num enorme embrulho que se encontra pousado ao lado do funcionário do “Serviço de Entregas”. 

Luís é assaz curioso e gosta muito de prendas. Por isso, não consegue disfarçar o seu falsete desengonçado:
- Sim, sou o Luís Nunes…Uma encomenda? De que se trata?
O seu interlocutor responde, um pouco impaciente:
- De que se haveria de tratar? É o carrinho.

O carrinho. Pois claro. Então não haveria de ser o carrinho. Mas que carrinho? Estes pensamentos invadem o cérebro de Luís, por isso exterioriza-os:
- O carrinho. Pois claro. Então não haveria de ser o carrinho. Mas que carrinho?
O interlocutor responde, sem se intimidar com a pergunta e assumindo uma postura um tanto ou quanto mais impaciente:
- Que carrinho haveria de ser? É o carrinho do bebé, obviamente.
Obviamente. Olhando para o embrulho, Luís facilmente se apercebe de que o funcionário do “Serviço de Entregas” está a falar toda a verdade. É que o embrulho tem mesmo a forma de carrinho de bebé. Quer dizer, não é o embrulho que tem a forma de carrinho de bebé, os embrulhos não assumem, por regra, a forma de carrinho de bebé e este não é excepção, nem sequer tem desenhos de carrinhos de bebé. Trata-se de um embrulho simples, todo vermelho. Mas o objecto que se esconde por dentro do embrulho corresponde perfeitamente à imagem mental que o Homem Médio associaria a um carrinho de bebé.
Até aqui tudo bem. Há um senhor com um uniforme a dizer “Serviço de Entregas” e que acaba de comunicar a Luís que tem uma entrega para fazer. Depois salienta que se trata de um carrinho de bebé e o objecto embrulhado tem, de facto, a aparência de um carrinho de bebé.

Mas algo não bate certo, pensa Luís, que não consegue disfarçar uma certa perplexidade perante o rumo dos acontecimentos. Afinal, pensa em voz alta, “eu não encomendei nenhum carrinho de bebé”. Tenta fazer valer esta alteração substancial de factos mas a sua retórica esbarra contra a parede de betão pragmática do seu interlocutor, que responde fleumático:

- Como é que não encomendou o carrinho? Veja a nota de encomenda:

Carrinho de Bebé modelo “Flash Supreme Baby – RX 350”
Dimensões Carrinho aberto: 95 x 55 x 105 cm
Dimensões Carrinho fechado: 41/46 x 34 x 96 cm
peso 10,7 kg
Idade adequada: do nascimento aos 36 meses (até 15 kg de peso).
Inclui:
Berço dobrável tipo guarda-chuva.
Bassinet dupla altura.
Duas rodas com freio para facilitarem o transporte.
Bolsa de transporte, colchão e arco de jogos.
Está:
Conforme a normativa Europeia UNE-EN 72341/2:2010, EN 71:2015/1/25.

Luís fica impressionado com as magníficas qualidade técnicas do produto que se lhe apresenta bem embrulhado mesmo à frente dos seus pés, mas consegue, mesmo assim, esboçar o seguinte argumento:
- Tudo isto é muito bonito, mas não invalida o facto de eu não ter encomendado um carrinho de bebé. Olhe, talvez se tenha enganado na morada. Se calhar, a encomenda era para a minha vizinha do andar de baixo, ela está sempre a encomendar coisas pelo correio, ainda ontem foi um carregamento de três sacos só com vinagre balsâmico, talvez hoje lhe tenha apetecido comprar um carrinho de bebé.

Mas o empregado do “Serviço de Entregas”, na sua argumentação, corta o fio de pensamento de Luís:
- Na nota de encomenda está escrito 3º B. Este é o 3º andar. Como acabou de dizer, a sua vizinha do andar de baixo mora no andar debaixo deste. Se tal não sucedesse, não seria a sua vizinha do andar de baixo. Como tal, tudo o que está abaixo do 3º andar não pode corresponder ao 3º andar. Certo? Quando muito (e isso posso conceder), a sua vizinha residirá no patamar entre o 2º e o 3º andar, mas nunca residirá no 3º andar. Depois, há a questão da letra B. Repare no letreiro que se encontra aqui, mesmo por cima da sua porta: B. Não é a letra A, nem a C. Por isso, se a encomenda fosse da sua vizinha, não poderíamos falar de uma vizinha do andar debaixo do seu nem sequer de uma vizinha da porta ao lado. Poderia ser uma vizinha de casa. Certo. No entanto, há um problema: na nota de encomenda, para além de estar bem explícito que o destinatário reside no 3º andar B, está bem explícito o nome do destinatário da encomenda: Luís Nunes. Como o senhor bem me disse há pouco, chama-se Luís Nunes. A menos que me diga que tem uma vizinha de casa que se chama igualmente Luís Nunes, o que eu acho deveras improvável.

Luís Nunes fica aturdido com a capacidade argumentativa do seu interlocutor e apenas consegue balbuciar:
- Mas eu não encomendei carrinhos de bebé. Eu nem sequer tenho bebés. Nem sequer tenho namorada.
O interlocutor responde, com fleumática calma:
- Isso é lá consigo, meu amigo. Não tenho nada a ver com isso. Eu só entrego encomendas. Neste caso, um carrinho de bebés. E olhe que é um bom carrinho. Com uma boa lista de produtos associados. Deixe que lhe diga que se comprar produtos associados com o valor de 5.000 euros no prazo de um mês terá direito a 10% de desconto. Mas isso está tudo no Guião Operativo…olhe…tem alguma caneta à mão para assinar a nota de encomenda?

Luís continua com a mesma ausência de indumentária que caracterizara a sua indumentária nos minutos precedentes. Por isso, não tem qualquer caneta à mão. O seu interlocutor, notando perspicazmente este facto, profere as seguintes palavras:
- Deixe estar. Eu empresto-lhe a minha caneta. Assine aí, sim aí mesmo nessa linha que diz “assinatura do progenitor”.
- Não sabia que era progenitor.
- Então…acabo de lhe entregar um carrinho de bebé. Mas não nos vamos incomodar a fazer uma nota de incidente. Provavelmente trata-se de um CLIPJUT54.
Enquanto assina a nota de progenitura, Luís pergunta de um modo que pretende ser casual:
- Ah, é um CLIPJUT 54…bem me parecia…olhe..hum…o que é um CLIPJUT54?
O seu interlocutor volta a fazer o costumeiro ar impaciente:
- Não me cabe a mim responder. Como deve calcular, o seu caso consta certamente do FORMJEST. Tem de aceder à plataforma do utilizador que está inserida no modo SAFERIST. Mas olhe…como eu até estou de bom humor, tome um exemplar do Guião Operativo. Eu guardo sempre uns quantos na mala. Tenha um bom dia e não se constipe. Não há nada pior do que cuidar de um carrinho de bebés estando constipado.

Com estas palavras, o funcionário do Serviço de Entregas dá a Luís um calhamaço de centenas de páginas fotocopiadas, letra Bernard MT Condensed, tamanho 8.
“Não vou ler esta treta”, pensa Luís. Vou mas é para a cama.

Luís pega no embrulho, que é bem pesado e leva-o para dentro de casa.