segunda-feira, abril 23, 2007

I read her Elliot, I read her Yeats...

quinta-feira, abril 19, 2007

Uma brecha

O Ângulo abre uma brecha para falar da “actualidade”. Não que ao Ângulo a “actualidade” (esta expressão mereceria um post de tal forma longo que deixaria de fazer sentido inseri-lo aqui) não interesse; simplesmente não é esse o seu lugar de partilhas, estilhaços ou reflexões breves. Mas o Ângulo abre hoje, através de uma pequena brecha, uma excepção.

Virginia Tech Massacre já tem entrada na Wikipedia. O acontecimento (porque tem esse carácter, o de algo imprevisível) não é aparentemente singular, visto ter sido precedido de outros semelhantes, a não ser quiçá devido às proporções atingidas. A questão imediatamente política que levanta não pode ser, uma vez mais, senão a da famosa “Segunda Emenda” à Constituição Americana, que promove declaradamente o direito (senão mesmo a obrigação) da posse de armas por parte da população civil. O debate já deu azo a comentários mais ou menos sensatos na nosso cantinho blogosférico – trata-se, sem dúvida, de uma questão valiosa, fracturante até certo ponto na sociedade americana, mas que não esgota de todo o significado deste tipo de acontecimentos. Ao Ângulo interessou-lhe outra: a da ausência de significado e, por conseguinte, a da total impotência hermenêutica a que este acontecimento nos abandona. Não há aqui qualquer razão aparente: nada de reivindicações, impulsos revolucionários, cruzadas religiosas ou sequer mensagens subliminares. É esta aparente banalização do mal que nos deixa atónitos e sem resposta possível. Mas a banalização do mal (tal como a entende Hannah Arendt) é o resultado extremo do aperfeiçoamento técnico (τέχνη) de uma utopia (os campos de extermínio nazis seriam o exemplo mais famoso). Ora, é este teleologismo invertido que se encontra, à partida, ausente nos “school massacres”: só através de uma retórica muito enviesada é que se poderia concluir que estes configurariam a banalização do mal dentro de um sistema de ensino formatado que visa a produção massificada de “conhecimentos”, e que estaria intimamente ligado a uma tecno-sociedade altamente especializada. Por isso é que o grande filme sobre o massacre de Columbine não é “Bowling for Columbine” de Michael Moore (e não unicamente devido dos excessos demagógicos do realizador), mas sim “Elephant” de Gus Van Sant: o retrato em tempo real de um fragmento de harmonia aparente, quase onírica, que é interrompida pela brutalidade de um instante, também ele “onírico” na sua falta de densidade significante. A ordem quotidiana, hipnotizante de tão harmoniosa até mesmo nos seus supostos contra-tempos, reflecte, ela mesma, a sua própria fragilidade radical – quando a força titânica assola à superfície, é nos estilhaços que deixa que faz a sua aparição. E isto não só porque todo o acesso possível aos acontecimentos se dá através da imagem: o que se passa é que o próprio acontecimento mimetiza a sua representação. Pode ler-se este fechamento como o fim de um ciclo ou como a assunção transparente de uma verdade ontológica. Seja como for, não devemos ceder nunca à lógica messiânica da revelação, pois o fechamento não significa senão isto: não há significado transcendental. Há sim a luta incessante contra aquilo mesmo que nos configura e que não pode senão exceder-nos no seu carácter monstruoso – o Capitão Abab frente a Moby Dick e o hipnotismo das belas formas apolíneas na sua fragilidade radical. É este o encantamento que Van Sant soube captar.

segunda-feira, abril 16, 2007

Interrupção para uma gargalhada lancinante

«Há muito que lhe não escrevo, Frau Milena, e mesmo hoje estou a escrever só em consequência de um incidente. Não tenho de me desculpar pelo meu silêncio, pois bem sabe como detesto cartas. Todas as desgraças da minha vida - não o afirmo para me queixar, mas sim para daí retirar uma lição de interesse mais geral - resultam, digamos, de cartas ou da possibilidade de as escrever. Nunca fui, por assim dizer, enganado pelos homens, mas pelas cartas sempre; e, na realidade, não só pelas de outras pessoas, mas pelas minhas. No que me diz respeito, há aqui um desgosto pessoal sobre o qual nada mais direi, mas há também uma desgraça geral. A grande facilidade de escrever cartas deve ter introduzido no mundo - do ponto de vista puramente teórico - uma terrível desintegração das almas. É, de facto, uma relação com fantasmas, não só com o fantasma do destinatário, mas também com o nosso próprio fantasma, o qual cresce entre as linhas da carta que se escreve e, sobretudo, numa sequência de cartas onde uma corrobora a outra e a refere como testemunha. Como poderá ter surgido a ideia de que as pessoas podem comunicar umas com as outras através de uma carta? Pode-se pensar numa pessoa distante, pode-se ir ter com uma pessoa que esteja próxima - tudo o mais está para além da força humana. Escrever cartas significa despirmo-nos diante dos fantasmas, e eles aguardam avidamente este gesto. Beijos escritos não chegam ao destino, os fantasmas bebem-nos pelo caminho. É graças a este alimento abundante que eles se multiplicam enormemente. A humanidade sente-o e luta contra ele; e para tentar eliminar o mais possível o elemento fantasmático entre as pessoas e criar uma comunicação natural, restaurando a paz das almas, inventou o caminho-de-ferro, o automóvel, o aeroplano. Mas isso já não serve de nada, pois estas são, evidentemente, invenções feitas no momento da queda. O adversário é de tal maneira mais calmo e mais forte: depois do serviço postal, ele inventou o telégrafo, o telefone, a telegrafia sem fios, [a internet]. Os fantasmas não morrerão à fome, mas nós, nós pereceremos.»

(Extracto de uma carta de Kafka a Milena Jesenská)

sexta-feira, abril 13, 2007

Fragmentos de um chá no deserto - 3

Algazel: No fim de contas, a única diferença entre nós os dois é que tu és biografável e eu não.

Homem-Gargalhada: Não posso concordar contigo. Tu também és biografável. Estou a imaginar um livro com a tua data de nascimento na primeira página e a data da tua morte na última, e pelo meio algumas centenas de páginas em branco. Um deserto branco de silêncio. Não será esta a biografia ideal?

quinta-feira, abril 05, 2007

Uma longa citação -2

A lei, o humor e a ironia

Há uma imagem clássica da lei. Platão deu-nos dela uma expressão perfeita, que se impôs no mundo cristão. Esta imagem determina um duplo estado da lei, do ponto de vista do seu princípio e do ponto de vista das suas consequências. Quanto ao princípio, a lei não é primeira. A lei não é senão um poder segundo e delegado, ela depende de um princípio mais elevado que é o Bem. Se os homens soubessem o que é o Bem, ou soubessem conformar-se a ele, não precisariam de lei. A lei não é senão o representante do Bem num mundo deixado por ele mais ou menos ao abandono. Se bem que, do ponto de vista das consequências, obedecer às leis é o “melhor”, o melhor sendo a imagem do Bem. O justo submete-se às leis, no país em que nasceu, no país em que vive. Ele contribui assim para o melhor, mesmo que guarde a liberdade de pensar – de pensar o Bem e pelo Bem.

Esta imagem, tão conformista em aparência, não deixa de comportar uma ironia e um humor que constituiriam as condições de uma filosofia política, uma dupla margem de reflexão, acima e abaixo do patamar da lei. A morte de Sócrates é quanto a isto exemplar. Eis que as leis colocam o seu destino entre as mãos do condenado e, através da sua submissão, exigem que ele lhes dê uma sanção reflexa. Há imensa ironia no esforço de erguer as leis a um Bem absoluto, como que a um princípio necessário que as funde. Há imenso humor no esforço de descer das leis para um Melhor relativo, necessário para nos persuadir a obedecer-lhes. O mesmo é dizer que a noção de lei não se sustenta por si mesma, a não ser através da força, e que ela precisa idealmente de um princípio mais elevado, assim como de uma consequência mais remota. Talvez seja por isto que, a partir de um texto misterioso do Fédon, os discípulos não consigam assistir à morte de Sócrates sem rir. A ironia e o humor formam essencialmente o pensamento da lei. É por relação com a lei que se exercem e que encontram o seu sentido. A ironia é o jogo de um pensamento que se permite fundar a lei sobre um Bem infinitamente superior; o humor é o jogo desse pensamento que se permite sancionar por um Melhor infinitamente mais justo.

Se nos perguntarmos sob que influências a imagem clássica da lei foi invertida e destruída, é certo que a resposta não será a descoberta de uma relatividade, de uma variabilidade das leis. Porque esta relatividade era plenamente conhecida e estava plenamente incluída na imagem clássica; fazia necessariamente parte dela. A verdadeira razão encontra-se noutro lugar. Encontraremos o enunciado mais rigoroso na Crítica da razão prática de Kant. O próprio Kant diz que a novidade do seu método é que nele a lei já não depende do Bem mas, pelo contrário, é o Bem que depende da lei. Isto significa que a lei já não tem de se fundar, já não se pode fundar sobre um princípio superior do qual retiraria o seu direito. Isto significa que a lei deve valer por si mesma e fundar-se sobre si mesma, que não tem portanto outro recurso que a sua própria forma. É a primeira vez, desde logo, que se pode, que se deve falar d’A LEI, sem outra especificação, sem indicar um objecto. A imagem clássica não conhecia senão as leis, específicas como tais ou tais, a partir dos domínios do Bem e das circunstâncias do Melhor. Quando Kant, pelo contrário, fala d’ “a” lei moral, a palavra moral designa apenas a determinação do que permanece absolutamente indeterminado: a lei moral é a representação de uma pura forma, independente de um conteúdo e de um objecto, de um domínio e de circunstâncias. A lei moral significa A LEI, a forma da lei, como que excluindo todo o princípio superior capaz de a fundar. Neste sentido, Kant é um dos primeiros que rompem com a imagem clássica da lei e que nos abrem uma imagem propriamente moderna. A revolução copernicana de Kant na Crítica da razão pura consistia em fazer girar os objectos do conhecimento em torno do sujeito; mas a da Razão prática, que consiste em fazer girar o Bem em torno da Lei, é sem dúvida muito mais importante. Sem dúvida também que ela exprime as últimas consequências de um retorno à fé judaica para lá do mundo cristão; talvez anuncie mesmo o retorno a uma concepção pré-socrática (edipiana) da lei, para lá do mundo platónico. Fica que, ao fazer da LEI um fundamento último, Kant dotava o pensamento moderno de uma das suas dimensões principais: o objecto da lei furta-se essencialmente.

Aparece uma outra dimensão. A questão não é a do equilíbrio que Kant deu à sua descoberta no seu próprio sistema (e do modo como ele salva o Bem). Trata-se antes de uma outra descoberta, correlativa, complementar da anterior. Ao mesmo tempo que a lei já não se pode fundar sobre um princípio superior, também já não pode fazer-se sancionar pelo Melhor como boa vontade do justo. Porque o mais claro é que A LEI, definida pela sua pura forma, sem matéria e sem objecto, sem especificação, é tal que não se sabe o que ela é, e não se pode sabê-lo. Ela age sem ser conhecida. Ela define um domínio de errância no qual já se é culpado, isto é, no qual se transgrediu já os limites antes de saber o que ela é: assim Édipo. E a culpabilidade e o castigo não nos fazem sequer conhecer o que é a lei, mas deixam-na nessa indeterminação mesma, que corresponde como tal à precisão extrema do castigo. Kafka soube descrever este mundo. E não se trata de colocar Kant ao lado de Kafka, mas apenas de resgatar dois pólos que formam o pensamento moderno da lei.

Com efeito, se a lei não se funda mais sobre um Bem prévio e superior, se vale pela sua própria forma que deixa o conteúdo inteiramente indeterminado, torna-se impossível dizer que o justo obedece à lei pelo melhor. Ou antes: aquele que obedece à lei não é ou não se sente justo por causa disso. Pelo contrário, ele sente-se culpado, é culpado de antemão, e tanto mais culpado quanto mais estritamente obedece. É através da mesma operação que a lei se manifesta enquanto lei pura, e nos constitui como culpados. As duas proposições que formavam a imagem clássica afundar-se-iam ao mesmo tempo, a do princípio e a das consequências, a da fundação pelo Bem e a da sanção pelo justo. Foi Freud quem resgatou este fantástico paradoxo da consciência moral: longe de nos sentirmos tanto mais justos quanto nos submetemos à lei, esta «comporta-se com tanta mais severidade e manifesta uma desconfiança tanto maior quanto mais virtuoso é o sujeito... Rigor tão extraordinário da consciência moral em ser-se o melhor e o mais dócil...» (Freud, Mal-estar na civilização).

Mas, mais ainda, pertence a Freud ter dado a explicação analítica do paradoxo: não é a renúncia às pulsões que deriva da consciência moral, pelo contrário, é a consciência moral que nasce da renúncia. Logo, quanto mais forte e rigorosa é a renúncia, mais a consciência moral, herdeira das pulsões, é forte e se exerce com rigor. («A acção exercida sobre a consciência pela renúncia é tal que toda a fracção de agressividade que nos abstemos de satisfazer é recuperada pelo super-ego e acentua a sua própria agressividade contra o ego.») Revela-se agora, então, o outro paradoxo, que diz respeito ao carácter fundamentalmente indeterminado da lei. Tal como diz Lacan, a lei é a mesma coisa que o desejo recalcado. Ela não poderia determinar sem contradição o seu objecto ou definir-se por um conteúdo sem erguer o recalcamento sobre o qual repousa. O objecto da lei e o objecto do desejo não são senão um, e furtam-se simultaneamente. Quando Freud mostra que a identidade do objecto reenvia à mãe e que a própria identidade do desejo e da lei ao pai, não pretende simplesmente restaurar um conteúdo determinado da lei mas, quase que pelo contrário, mostrar como a lei, em virtude da sua fonte edipiana, não pode senão furtar necessariamente o seu conteúdo, para valer como pura forma nascida de uma dupla renúncia ao objecto como ao sujeito (mãe e pai).

A ironia e o humor clássicos, tal como tinham sido empregues por Platão, tal como tinham dominado o pensamento das leis, encontram-se portanto invertidos. A dupla margem, representada pela fundação da lei sobre o Bem e pela aprovação do sábio em função do Melhor, encontra-se reduzida a nada. Nada mais há do que a indeterminação da lei de um lado, e a precisão do castigo do outro. Mas por causa disto, a ironia e o humor tomam uma nova figura, moderna. Continuam a ser um pensamento da lei, mas pensam-na na indeterminação do seu conteúdo, tal como na culpabilidade daquele que se submete a ela. É evidente que Kafka dá ao humor e à ironia valores propriamente modernos na sua relação com a mudança de estatuto da lei. Max Brod recorda que quando Kafka leu O Processo, os ouvintes desataram a rir às gargalhadas, tal como o próprio Kafka. Riso tão misterioso quanto aquele que acolhe a morte de Sócrates. O pseudo-sentido do trágico é imbecil; quantos autores não deformamos à força de substituirmos a potência agressiva cómica do pensamento que os anima por um sentimento trágico pueril. Nunca houve senão uma maneira de pensar a lei, um cómico do pensamento, feito de ironia e de humor.

Mas eis que, com o pensamento moderno, se viria a abrir a possibilidade de uma nova ironia e de um novo humor. A ironia e o humor estão agora dirigidos para uma inversão da lei. Encontraremos Sade e Masoch. Sade e Masoch representam os dois grandes empreendimentos de uma contestação, de uma inversão radical da lei. Chamamos sempre ironia ao movimento que consiste em superar a lei na direcção de um princípio mais elevado, para não reconhecer na lei senão um princípio segundo. Mas, precisamente, o que se passa quando o princípio superior já não existe, já não pode ser um Bem capaz de fundar a lei e de justificar o poder que lhe delega? Sade mostra-nos. A lei em todas as suas formas (natural, moral, política) é a regra de uma natureza segunda, sempre ligada a exigências de conservação, e que usurpa a verdadeira soberania. Importa pouco que, seguindo uma alternativa bem conhecida, a lei seja concebida como exprimindo a força sobranceira do mais forte ou, pelo contrário, como a união protectora dos fracos. Porque estes senhores e estes escravos, estes fortes e estes fracos pertencem inteiramente à natureza segunda; é a união dos fracos que favorece e suscita o tirano, é o tirano que precisa deste união para ser. De qualquer das formas, a lei é a mistificação, não o poder delegado mas o poder usurpado, na abominável cumplicidade entre os escravos e os seus senhores. Sublinhe-se até que ponto Sade denuncia o regime da lei como sendo simultaneamente o dos tiranizados e o dos tiranos. Com efeito, não se tiraniza senão através da lei: «As paixões do meu vizinho são infinitamente menos temíveis que a injustiça da lei, porque as paixões do meu vizinho estão contidas pelas minhas, enquanto que nada pára, nada contém as injustiças da lei.» Mas também, e sobretudo, não se é tirano senão através da lei: o tirano não floresce senão com a lei, e, como diz Chigi em Juliette: «Não é nunca na anarquia que os tiranos nascem, não os vejais erguer-se senão à sombra das leis ou autorizando-se delas.» Isto é o essencial do pensamento de Sade: este ódio ao tirano, a maneira como mostra que a lei torna o tirano possível. O tirano fala a linguagem das leis e não possui outra linguagem. Ele precisa da «sombra das leis»; e os heróis de Sade encontram-se investidos de uma estranha anti-tirania, falando como nenhum tirano poderia falar, como nenhum tirano alguma vez falou, instituindo uma contra-linguagem.

A lei é portanto superada na direcção de um princípio mais elevado, mas este princípio já não é um Bem que a funda; é, pelo contrário, a Ideia de um Mal, Ser supremo em malevolência, que a inverte. Inversão do platonismo e inversão da própria lei. A superação da lei implica a descoberta de uma natureza primeira, que se opõe em todos os pontos às exigências e aos reinos da natureza segunda. É por isto que a Ideia do mal absoluto, tal como é incarnada nesta natureza primeira, não se confunde nem com a tirania, que pressupõe ainda as leis, nem mesmo com uma composição dos caprichos e das arbitrariedades. O seu modelo superior e impessoal está antes nas instituições anárquicas do movimento perpétuo e da revolução permanente. Sade lembra-o frequentemente: a lei não pode ser superada senão na direcção da anarquia como instituição. E que a anarquia não possa ser instituída senão entre dois regimes de leis, um antigo regime que ela abole e um novo regime que ela engendra, não impede que esse curto momento divino, quase reduzido a zero, possa testemunhar a sua diferença de natureza em relação a todas as leis. «O reino das leis é vicioso; é inferior ao da anarquia; a maior prova do que afirmo reside na obrigação com que cada governo se depara de mergulhar ele próprio na anarquia quando quer refazer a sua constituição.» Não há superação da lei senão num princípio que a inverte e que nega assim o seu poder.

Em compensação, seria insuficiente apresentar o herói masoquista como submetido às leis e contentando-se por estar. Assinala-se, por vezes, todo o escárnio que haveria na submissão masoquista, e a provocação, a potência crítica, dessa aparente mansidão. Simplesmente, o masoquista ataca a lei por outro lado. Chamamos humor já não ao movimento que ergue a lei a um princípio mais elevado, mas àquele que desce da lei para as consequências. Conhecemos todas as maneiras de contornar a lei por excesso de zelo: é através de uma escrupulosa aplicação que se pretende então mostrar o seu absurdo, esperando precisamente pela desordem que ela supostamente interdita e conjura. Toma-se a lei à palavra, à letra; não se lhe contesta o carácter último ou primeiro; faz-se como se, em virtude desse carácter, a lei reservasse para si os prazeres que nos interdita. Desde logo, é a força de observar a lei, de desposar a lei, que se pode saborear alguma coisa desses prazeres. A lei já não está ironicamente invertida, por estar erguida a um princípio, mas contornada humoristicamente, obliquamente, por aprofundamento das consequências. Ora, cada vez que se considera um fantasma ou um rito masoquista, é-se marcado pelo seguinte: a aplicação mais estrita da lei tem nele o efeito oposto àquele que seria normalmente esperado (por exemplo, as chicotadas, longe de punir ou de prevenir uma erecção, provocam-na, asseguram-na). É uma demonstração de absurdo. Encarando a lei como processo punitivo, o masoquista começa por se submeter à aplicação da punição; e nessa punição sofrida, ele encontra paradoxalmente uma razão que o autoriza, e que o manda mesmo experimentar o prazer que a lei supostamente lhe interditava. O humor masoquista é o seguinte: a mesma lei que me interdita realizar um desejo sob pena de uma punição consequente é agora uma lei que coloca a punição no início e que, como consequência, me ordena satisfazer o desejo. Theodor Reik, ainda, soube analisar bem este processo: o masoquismo não é prazer na dor, nem mesmo na punição. Na melhor das hipóteses, o masoquista encontrará na punição e na dor um prazer preliminar; mas o seu verdadeiro prazer, ele encontra-o a seguir, naquilo que a aplicação da punição torna possível. O masoquista deve sofrer a punição antes de experimentar o prazer. Seria lamentável confundir esta sucessão temporal com uma causalidade lógica: o sofrimento não é causa do prazer, mas condição prévia indispensável para a vinda do prazer. «A inversão no tempo indica uma inversão do conteúdo... O Tu não deves fazer isto foi transformado em Tu deves fazer isto... Uma demonstração do absurdo da punição é obtida mostrando que tal punição para um prazer proibido condiciona precisamente esse mesmo prazer.» (Th. Reik, O Masoquismo: «O masoquista exibe o castigo e a sua falência; é certo que mostra a sua submissão, mas também a sua revolta invencível, provando que obtém o seu prazer apesar do sofrimento... Ele não pode ser quebrado desde o exterior, pois tem uma capacidade infinita de suportar uma punição, sabendo subconscientemente que não foi vencido».) Este procedimento reflecte-se nas outras determinações do masoquismo, denegação, suspense, fantasma, que formam outras tantas figuras do humor. Eis o masoquista insolente em obsequiosidade, revoltado em submissão: em suma, o humorista, o lógico das consequências, tal como o ironista sádico era o lógico dos princípios.

Partindo da ideia de que a lei não pode ser fundada pelo Bem, mas deve repousar sobre a sua forma, o herói sádico inventa uma nova maneira de erguer a lei a um princípio superior; mas esse princípio é o elemento informal de uma natureza primeira destruidora das leis. Partindo da outra descoberta moderna, que a lei alimenta a culpabilidade daquele que lhe obedece, o herói masoquista inventa uma nova maneira de descer da lei para as suas consequências: ele “contorna” a culpabilidade, fazendo do castigo uma condição que torna possível o prazer proibido. Através disto, o masoquista não inverte menos a lei que o sádico, ainda que faça de uma outra maneira. Vimos como estas duas maneiras procedem, ideologicamente: tudo se passa como se o conteúdo edipiano, sempre furtado, sofresse uma dupla transformação – como se a complementaridade mãe‑pai fosse quebrada duas vezes, sem simetria. No caso do sadismo, é o pai que é colocado acima da lei, princípio superior que toma a mãe como vítima por excelência. No caso do masoquismo, a totalidade da lei é reportada à mãe, que expulsa o pai da esfera simbólica.

(in Gilles Deleuze, Présentation de Sacher-Masoch)

quarta-feira, abril 04, 2007

Fragmentos de um chá no deserto - 2

Algazel: Sabes por que me tornei místico?

Homem Gargalhada: Suspeito. Mas podes dizer-mo, se o desejares.

A.: Antes eu tive tudo, conheci todas as coisas, amei a diversidade da vida, saboreei o pão, o vinho, a água e a saliva humanos. Toquei e trinquei peles, ora queimadas, ora virgens. Distinguia no paladar a amada desejada, via uma luz atravessar os corpos desconhecidos e interpretava os sinais com uma presciência quase divina. Correr ou estar parado eram para mim uma mesma natureza em estados diferentes. A aventura era o destino natural da minha vida, tal como é o da tua. Até que um dia... bem, não foi num dia exacto, não foi mesmo num momento decisivo, não houve um instante, houve sim qualquer coisa, qualquer coisa que eu não consigo dizer em palavras e que demorou milhões de anos a surgir, ou talvez tempo nenhum, que veio ter comigo, apareceu, mas não me apareceu aos sentidos, eu não a vi, não a ouvi nem sequer toquei, mas senti-a e ela abraçou-me. Alguns chamam-lhe loucura [o Homem-Gargalhada, que segue com a máxima atenção e tristeza as palavras de Algazel move subtilmente a cabeça e fixa os olhos no vazio como que a convencer-se de que esses que lhe chamam loucura nada sabem do mundo…], chamam-lhe loucura porque aqui tudo tem que ter um nome, mas essa coisa que me abraçou não tem nome e só quem a conhece sabe porque tem de ser assim.

H.G.: (um suspiro finíssimo, é tudo o que o Homem-Gargalhada tem a dizer)

A.: Agora tenho a areia do deserto, o céu, um ou outro oásis, e isso chega-me, tal como basta a Deus possuir o Universo todo…

H.G.: Os místicos, quer-me parecer, são os supremos apaixonados, supremamente desencantados.

terça-feira, abril 03, 2007

Estes Já Participaram no Concurso!














Dois dos felizes vencedores olham alegremente para o prémio!
E você, do que está à espera? Concorra já!
Não aceite imitações! Adquira o único e autêntico relógio Homem-Gargalhada!

Merchandising do Homem-Gargalhada

A pedido de muitas famílias, voltámos a distribuir os relógios com o logótipo do Homem-Gargalhada.
Para receberem um destes fantásticos topo de gama, basta mandarem-nos uma resposta original à seguinte pergunta: "O que aconteceria se o Homem-Gargalhada fosse eleito o Maior Português de Sempre?"
Os primeiros 10 participantes receberão ainda um kit de canetas Homem-Gargalhada.
Participem!

domingo, abril 01, 2007

Recensão Crítica

O assunto voltou recentemente à discussão e inúmeras são as publicações que nos últimos dois anos se dedicaram a escalpelizar o famoso encontro entre Algazel e o Homem-Gargalhada em Casablanca. Os trabalhos canónicos de Sedley e Wells, “Through the true: a famous tea” publicados pela Oxford University Press em 1974, dificilmente serão ultrapassados no seu vigor, clareza e abrangência. O mesmo não podemos dizer de uma tese que fez escola mas sobre a qual caiu algum pó académico: falamos de “La conscience de l’hasard: un rendez-vous à Casabalanca” de 1986, da autoria do eminente professor em Estudos algazelico-homogargalhadianos na Sorbonne, Henri Pétri. Segundo esta tese o encontro teria sido originado por inspiração divina, inspiração que o autor conceptualiza como uma das faces do acaso, “la face constructive de l’hasard”. Ora, um estudo publicado em 2005 por Amonius Lark, vem colocar a seguinte questão: será que Henri Pétri conhecia suficientemente bem as fontes? No seu livro maravilhosamente escrito, “The true behind the mask: a scrupulous study on the meeting of the Laughing Man and Algazel at Casablanca” este professor de Princeton questiona-se se Henri Pétri saberia ou não o que estava escrito nos registos da alfândega de Casablanca quando os dois heróis se econtraram. Na verdade, esses registos foram confidenciais durante muito tempo até que um investigador russo, Vladimir Kubitchek, os trouxe a público. Hoje sabe-se com um grande grau de precisão que o motivo que proporcionou este encontro foi uma súbita vontade de ir à casa de banho. Eis a história: Algazel estava a ponto de embarcar quando uma fascinante dor intestinal o tomou desprevenido. Sem perder tempo correu para a casa de banho mais próxima e com a pressa deixou cair o passaporte. É nesse momento que vai a passar o Homem-Gargalhada e vê o passaporte a cair. Durante algum tempo segue Algazel gritando em árabe: “Olhe o seu passaporte, você deixou-o cair.” Mas Algazel de nada se apercebe, tal era a pressa. Então, o Homem-Gargalhada vê-se obrigado a aguardar à porta da casa de banho e é quando Algazel sai e repara num homem de máscara de tons avermelhados, máscara que à primeira vista (e bem) lhe parece ser feita de pétalas de papoila vermelha, estendendo-lhe o seu passaporte que se dá o encontro. O que se passou depois é outra história e nós não pretendemos ser exaustivos. Remetemos, contudo, o leitor interessado para uma obra de consulta obrigatória se quiser saber mais: “Laughing Man and Algazel: a friendship”, Routledge, London, 2007, de Stewart Jenkins e Mary Catholic Church.