quinta-feira, março 30, 2006

Guerre

«Enfant, certains ciels ont affiné mon optique: tous les caractères nuancèrent ma physionomie. Les Phénomènes s'émurent. -À présent l'inflexion éternelle des moments et l'infini des mathématiques me chassent par ce monde où je subis tous les succès civils, respecté de l'enfance étrange et des affections énormes. -Je songe à une guerre, de droit ou de force, de logique bien imprévue.

C'est aussi simple qu'une phrase musicale.»

(Jean-Arthur Rimbaud, Illuminations)

O viajante e a sua sombra

Ao contrário de Platão, não concebo o “velho diferendo entre a poesia e a filosofia”. Porém, o meu será porventura o trabalho noético, o que quererá dizer que troco a felicidade por um bom argumento. O verso, esse, acontece-me sempre em jeito de suspiro e à medida que a aurora me (a)colhe incauto.

quarta-feira, março 29, 2006

O crepúsculo dos ídolos

Toda a poesia é reaccionária quando acontece na véspera de uma nova mitologia.

Farmer in the City

«Do I hear 21
21
21...»

Scott Walker dedicou "Farmer in the city", do seu álbum "Tilt", a Pier Paolo Pasolini.
Passados onze anos, a Cinemateca de Lisboa está a realizar um Ciclo dedicado ao cineasta italiano.
A maior parte dos filmes passa às 21.30. Se tiverem sorte, ainda arranjam bilhete, duas horas antes, pelo menos, a avaliar pela amostra da noite de estreia... divirtam-se!

Por seu lado, o novo disco de Scott Walker, e sucessor de "Tilt", está para sair. Chama-se "The Drift" e tem edição marcada para Maio de 2006.
O crítico do Jornal "Público", J.B., já disse que se trata de um dos melhores discos de sempre da história da música.
Como não sabemos se escreveu o artigo antes ou depois de ter tomado a sua dose diária de Haldol, o melhor é aguardarmos até lá...

terça-feira, março 28, 2006

Soneto H – IV

No termo de minha triste vida
Me pôs aquela que por despeito
Logrou atear meu peito
Sobre mim lançando sida.

Ainda agora meu ânimo recobro
E já nem mais amar eu posso
Se minha pele de adamanto coço
E é a duras penas qu’ inda obro.

Mas nos traços de seu rosto vejo
Um doce olhar que me diz silente:
“Foi sem dor que eu te dei, sem pejo,

transmitindo-te como quem mente
um terno vírus cuja heróica via
te há-de levar, de rastos, à apatia!”

O decálogo do ladrão de livros

Roubarei livros:

1- Porque são caros.
2- Mesmo que fossem baratos seriam caros.
3- Mesmo que fossem de graça seriam caros.
4- O lobby dos livros controla o mundo.
5- O que é que pede um livro “de bolso”? Ora, um bolso, claro.
6- Porque é nobre.
7- Porque é fácil.
8- Porque quem tem tempo para escrever ou é rico ou tem aversão ao dinheiro.
9- Porque é cool.
10- Porque sim.

Diário de um podengo executivo, ou talvez não-excerto

Saltei a correr da cama e tive de arrancar a peruca, que me enchia de pêlos. As meias ainda estavam no lugar, cheias de uma esperança vaga, sem lá de quê...
Os sapatos não foram nisso, recusaram o jogo, sabem o que a casa gasta...
Saí com a camisa um pouco mal-humorada, a gravata descomposta, esperando vôos mais altos. Tentaram todos assinar a carta de rescisão. Convenci-os com falinhas mansas, nada mais me restava...
Mas não estou convencido. O chão que piso já não liga ao que penso e eu corro esbaforido, com medo que ele me devore. Falta pouco para o fim e ainda quero comer umas massas estufadas.

segunda-feira, março 27, 2006

Seductio, onis

A decorosa e corrupta vota nesta etimologia. E vós?

Ecce Homo

Hoje tenho um
Curso, deformação
mental, conformação ideal,
um mar de ambições vagas, desmedidas,
que procuro encontrar, antes de me perder, neste fluxo medíocre de
sonhos, destroços, ilusões
esquecidas, mutações bem-vindas
de um novo ser ao qual eu não aspiro chegar

Coisa Ruim

Acordei a meio da noite, depois de um sonho vago e incómodo. As imagens passaram em frente à cama, tentei apanhá-las, mas foram demasiado rápidas e desvaneceram-se em poucos segundos. Fiquei uns minutos quieto, quase sem respirar, com os olhos fixos no tecto. Cansado, com o corpo dorido, gotas de suor a invadir-me a face, lá me levantei a custo. Cambaleei, quase sem sentidos, por entre sombras, luzes difusas. Encontrei o relógio numa qualquer divisão distante da casa, por entre um mar de objectos desconhecidos.
Depois de ter inspeccionado o quarto, voltei para a cama, deitei-me, cuidadosamente, procurando fazer o menor barulho possível. Tentei encontrar a melhor posição para voltar a adormecer. O sono demorou a chegar, fechei os olhos com muita força e contei os números muito baixo de 1 a 100, repetindo-os vezes sem conta. Por muito desconfortável que me sentisse, não mais me mexi. Acima de tudo, tinha medo e terror de acordar a minha consciência. Assim, e com muito receio, voltei a entrar lentamente nos sonhos. Mas durante várias horas fui abrindo o olho, de soslaio, com medo de que ela me atacasse num momento em que estivesse desprevenido.

A History of Violence ou Quando Cronenberg sabe como voltar a ser como Cronenberg

Cha cha cha

Quero fazer uma triste figura. Dançar aos saltinhos e a contra-tempo, deixar verter o vinho pelo canto dos lábios, esfregar os olhos e esborratar a pintura, mostrar a roupa interior descosida quando me baixar para apanhar as migalhas, trocar os vocábulos quando for a minha deixa, babar o vestido novo das minhas amigas quando as abraçar, comover-me com um lugar-comum distraído, praguejar a alta voz, cantar fora de tom, encenar o daltonismo em frente do espelho, ver o mundo em technicolor. Hoje só não quero fazer uma figura triste.

domingo, março 26, 2006

Aut-Aut, 1843

«Deus» é um nome próprio infinitamente substituível na cadeia textual de todos os nomes. Ou, por outras palavras, a impossibilidade de um só e único nome. Por mais que o transcenda e por muito que o fenda, o inominável só aparece jogando e inscrevendo-se no interior do trabalho de significação. Como lacre efervescente antes da inscrição legível do selo.

A gramática do signo-corpo-máscara ou a inscrição do sagrado (hierós-glýphein) na carne, segundo Oswaldo Guayasamín

Los espectros de la ciudad

"Hay", me ha dicho alguien, "muchos espectros en la ciudad". Entre ellos, espectros que golpean reiteradamente una u otra puerta. Espectros desventurados que no miden lo triste de su propio impulso, y divagan sus solitarios esfuerzos en medio de las llamadas surgidas de la vitalidad fantasmagórica del que dice: "está aquí", o "no hables". O que dice, con ronco alarido: "no he dicho nada, porque no está aquí".
Dice muchas cosas la gigantesca alegoría de los espectros tocando las puertas. Un acopio de risas, suspiros y reclamos se acomoda frente a las realidades del intrincado misterio manual, y de esas risas, suspiros y reclamos está hecho el talón espectral de aquella muerte que gime con valentía en el mar.

"Son muchos", siguió diciéndome alguien, "incontables, los espectros que rondan en todos los ámbitos de la ciudad. Unos aman al fuego, residen en la canaleta que alguien dejó olvidada allá, por los perímetros sanguinolentos de la ciudad, por el recuerdo, por la angustiosa situación de haber confeccionado un manteo para recién interesarse en conversar con los otros e incontables espectros de la ciudad.
"Yo me remito a los cuerpos muertos de las ciudades, los cuales tienen la mágica perseverancia de acercarse, de tocarme las costillas, de verme el esternón con sus menudos ojos. No hay duda de que esos cuerpos habrán de levantarse, alguna vez. Habrán de levantarse porque son gentiles, para amarrarle a uno el lazo de los zapatos. Habrán de levantarse para ejercer la venganza, porque la venganza se ejerce también con gentileza.
"Acaso no has llegado a saber que los muertos son gentiles. Ellos, más que nosotros, tienen el don de la palabra. Son demoníacamente angélicos, y su fuerza reside en eso reflexivo que tratan de hacerle hablar a su interlocutor".

Porque los espectros de la ciudad también saben viajar, y uno a veces los extraña. Es entonces - es decir, cuando están ausentes - que los pájaros cantan más tranquilos, que los horrores se distienden más aún, que los labriegos dan la mano con mayor satisfacción, que los cerros son más altos, que la pacificación de los relojes se convierte en opereta, que los imbéciles se transfiguran; esto último porque los imbéciles no tienen la virtud mágica de reconocer los espectros.

"Déjalo que cante", me dijo alguien. "Porque si no dejas que cante, reconocerás tácitamente el olvido. Y el olvido, de todas maneras, es peligroso para gran parte de la humanidad, y consecuentemente para ti. Es el olvido el promotor de tu emoción, y la razón suprema de tu virtud para contemplar los espectros de la ciudad. Ves. Los espectros tienen el don del viaje y del olvido. Ellos no saben que nosotros los estamos contemplando, así, en la ráfaga que significa para el mundo una ciudad.
"Ellos, los espectros, son dueños y señores del olvido. Son viajeros, pero sin embargo están siempre aquí. Y "aquí" - ten en cuenta - es la ciudad. Aquí, siempre aquí".

Cuando rozas con el hombro una esquina de alguna ciudad, viene a ti un escalofrío de espanto. Ves, a lo lejos, en una botica, por ejemplo, un espectro que te hace señas o, en un balcón, así a lo lejos, otro espectro que está moliendo café.
O bien, cuando suspiras frente a la ciudad, ves espectros de otra clase, de otra calidad. Espectros que desmienten la substancia del pensamiento.
Espectros cuya actitud desmiente la función del hígado y toda otra función. Ni las sombras, ni el sol, ni las casas, ni las amplias plazas, ni el hondo sentido de las canaletas, ni los dolores de la frente al contemplar la luna, pueden evitar la presencia de los espectros en las ciudades.
Son espectros. Están siempre en tu alma.

(Jaime Saenz)

Tabula rasa


A Natalia Maya tirou esta foto com uma caixa de sapatos e uns bons minutos de exposição – se há uma essência da fotografia, ela insinua-se quando seguimos a dedo o traçado da luz: o seu carácter predatório não é o da suposta fixação do referente-coisa, mas é, pelo contrário, o esboçar de um duplo que interdita a disjunção entre original e cópia.

The time is out of joint (ou o tempo que faz quando faz mau tempo)

A medida é o tempo presente infectado pelo que não é presente – nem passado nem futuro – e por isso não faz sentido prosseguir a lógica do movimento e da continuidade. O tempo, sabemo-lo, não tem medida certa. Se o relatarmos ao movimento, isto aparece-nos da forma mais óbvia: serão sempre os mesmo minutos, as mesmas horas que passam, independentemente de termos ou não em conta a distinção ambígua entre tempo subjetivo e tempo objectivo? De Aristóteles a Bergson, passando pelas lágrimas de Agostinho e pelos malabarismos hegelianos, o instante foge – dá e furta-se ao tempo. Em criança fazia esse exercício que consiste em pensar, em projectar, o momento imediatamente futuro, aquele em que pensarei em acto o que pensei que ia pensar, e que mais não era do que pensar que já tinha antecipado e pensado esse mesmo momento. Mas é claro que o desencaixe de facto desencaixava e o que então eu pensava já não era exactamente o que eu tinha pensado que ia pensar, mas a representação momentânea (presente) do próprio instante. Contudo, o sistema mantinha-se: cada momento presente, ainda que nunca o seja (porque já sempre passado e sempre porvir: presente-passado e presente‑futuro) é sempre a projecção do momento exactamente anterior e a antecipação do momento exactamente posterior: assim, o momento nunca é igual a si mesmo. Nada de novo – repito Aristóteles e toda a estrutura do pensamento tal como o sabemos. Mas será esse momento abstracto o instante? Nova abstracção e repetição da estrutura, quiçá. Ou talvez que pudesse aparecer aí o verdadeiro desencaixe deste círculo que se devora a si mesmo (Cronos comendo os seus filhos): o absolutamente inantecipável, absolutamente improjectável. E é a dúvida: o instante vem ou faz-se vir? haverá uma antecipação que não antecipa senão na medida em que espera o que pode nunca vir? Mas, por isso, não deixará de ser antecipação. Assim não dá! Talvez seja preciso estar atento ao mais ínfimo sinal – não propriamente ver vir, mas deixar vir e sentir quando vem – isto é, quando já veio e por isso já passou. A ética aristocrata não tem nada a ver com o ditame moral cristão que prescreve dar a outra face depois da bofetada: ela será antes o imperativo público de andar sempre de cara descoberta. O problema é quando faz frio e a paciência falta.

Aforro

DECIDI que a partir de agora só escreverei tercetos
Porque quero afiançar o furor da Palavra
Porque quero condensar a gratuitidade do Gesto
Porque ao quarto verso já não tenho nada a dizer

Migraleve

Quando os pensamentos ganham espessura e gravidade, creio poder compreender o propósito absurdo dos primeiros dissectores de cadáveres, o de encontrar o substrato material da alma humana. É cíclico: começa com uma concentração de fragmentos na parte inferior do cerebelo que pouco a pouco dá origem a uma massa disforme, em constante expansão e convergência, configurando-se ora como uma bola achatada nos pólos que me metamorfoseia em Atlas, ora como uma estrela magnífica de pontas afiadas a destilar peçonha, ora como um falo desmedido que erige uma variação doutrinal a cada investida. Depois a combustão: nuvens carregadas na abóbada do crânio, faúlhas em brasa contra o interior dos glóbulos oculares, jorros de esperma que ascendem ao esófago. E recomeça o ciclo.

domingo, março 19, 2006

Obituário

Morreu Fernando Gil, talvez o único filósofo português da actualidade. Aqui fica uma tímida gratidão enlutada. E que nos inquietemos sem paz.

quinta-feira, março 16, 2006

Sexta regra para uma boa leitura do Corão

Chora. Se não chorares espontaneamente, força-te a chorar.

A minha infância

“Naquele tempo sabia mamar e sentir-me regalado, e chorar com o mal-estar do meu corpo, e nada mais.”
Sto. Agostinho, Confissões, I, vi, 7

Oh, Circe...

Era ela que me acordava todas as manhãs. De Inverno ligava-me logo o aquecedor e em breve eu tinha um saboroso pequeno almoço na cama. Então eu levantava-me e corria para a aula de mitologia, assustado e desejoso de entender o que se estava a passar.

terça-feira, março 14, 2006

Circe

O Juan continua a encantar-me com as suas meticulosas variações sobre o universo insólito do (literalmente) grande Cortázar.

domingo, março 12, 2006

Nevoeiro


Hoje o Mondego evaporou-se-me aos olhos.

O estado das coisas

A obra, ou a realização, significa a bancarrota. O drama, esse, escreve-se por si mesmo. «The space between the characters can carry the load.» A mão que segura a mão arrebata o cinzel e impede a iminência da catástrofe – para que todo o crime permaneça incógnito. «Life sneaks out. All stories are about death.» Na escrita a duas mãos, uma comanda e a outra riposta na obscuridade; a primeira inscreve no branco o jogo das luzes, a outra sujeita o caderno à sombra, na hora da embriaguez. «Life is in colours but black and white is more realistic.» Toda o exercício redunda na procura de uma chave oculta para lá do horizonte – cada oportunidade acumulada torna-se proveito tributável e multiplica as combinatórias no espaço neutro. «I am home nowhere, in no house, in no country.» A tragédia é o antecipar da tragédia – e a sua dilação no presente vivo. «Stories only exist in stories (whereas life goes by, in the course of time, without the need to turn into stories).» Com todo o oceano por diante...

sexta-feira, março 10, 2006

Ennui

Os pinguins amarelos voltaram a aparecer ontem à noite. Começaram a cantar, desafinados, pois claro...Atirei-lhes com uns baldes de ácido para cima, mas cantaram ainda com mais força. O canto do galo mandou-os embora. Mas, com esta claridade toda, como é que hei-de conseguir dormir?

Pequenos dramas domésticos

Desde há uma semana que só oiço ecos. E isso é um pouco irritante. Tento responder igualmente por ecos, mas não resulta. Falta-me a convicção e o meu tom de voz não é o mais adequado para estas experiências.

domingo, março 05, 2006

Exílio

Sofro
a tua ausência
nas entrelinhas do verso branco.

Lisbon's burning with boredom now

De um grande amigo, profundamente amoral mas clarividente:

«Esgotos, esgotos. Esgotos e excrementos.

Revirados pela
dança dos dedos dos pés,
moldados por toda
a luxúria do barro em teu redor, por toda
a sua zelosa
saliva e suor:

ainda, ainda,
ainda e sempre
o mesmo - um cálice -:
e assim o êxtase faz a sua ronda,
a sua ronda, a ronda.

Bebam, bocas, bebam!
A quem se destina o fogo liquefeito?
Sorvido on the rocks, on the rocks.

Com ele vai uma rainha, a náusea.
É ela quem traz as borras e o fim.»

(Paul Celan)

quarta-feira, março 01, 2006

Entrudo

Saíram de casa
e as máscaras postas
ao acaso
colaram-se ao rosto
habituado ao vento
Alguns de uniforme
e outros assim
como nós que
os víamos passar
Saíram fora do tempo
sem ter sonhado com
tempestades
ou sóis de morte
sem ter calçado
o cristal ou o ouro
de reis e cortesãs
sem ter amado
previamente o que resta
Saíram de casa
somente para rir e chorar
até ao fim
dentro das máscaras.